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Cartel Formação do Analista

Ementa:

A partir da necessidade de entender Escola e Formação do Analista enquanto conceitos e não como preceitos é que esse grupo de cartel se formou. As razões epistêmicas contidas no "Ato de Fundação da Escola Freudiana de Paris", de 1964; as razões clínicas apresentadas na "Proposição de 09  de Outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola"; e as razões políticas enunciadas na " Carta de Dissolução de 1980", apontam para a necessidade de aprofundar estudos sobre as questões concernentes à formação.

 

Os estudos do grupo abrangem levantamento histórico do movimento psicanalítico, fim de análise e procedimento de passe e também os dispositivos de transmissão da psicanálise.
 

As questões que norteiam a produção escrita do grupo são:

1- A partir do comentário de Lacan, que a escolha do nome Cartel , que deriva de "cardo" destacando sua significação em latim, como dobradiça, eixo; poderíamos pensar um cartel como uma função de dobradiça que permite passagens, trânsitos, aberturas? E nesse sentido, o cartel segue se afirmando como um dispositivo possível para transmissão da psicanálise como outrora apontou Lacan?

2- Há uma relação nova com o inconsciente, com o real produzido pela experiência do passe?

3- Há analista sem Escola?

Bibliografias sugeridas

- Lacan e a formação do psicanalista/ Marco Antonio Coutinho Jorge

- Fundamentos da Clínica Psicanalítica/ Erik Porge

- Como trabalha um psicanalista?/ J.D Nasio

- A Formação do Analista/ Mirta  Zbrun

Encontros do primeiro semestre:
22/02 - 29/03 - 26/04 - 31/05 - 28/06 - 26/07
17:30- 18:30

Contato para mais informações e ingresso aos encontros:
Whatsapp de Carmen Consuelo (11) 9 7028-6411

Por que Cartel?
Aline Dornelles

 

Mergulhar na obra lacaniana é desafiador e instigante, e lançar mão de companhias nesse percurso singular e não raro solitário é fundamental. Frequentar o seminário da Escola de Psicanálise Estrutural- EPE, durante o ano de 2022 e na ocasião dissecar o Seminário 11- Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise, reatualizou o desejo de cartelar sobre questões concernentes a formação do analista e assim se deu a proposta de inscrever esse novo cartel na escola.

O Seminário 11 foi o gerador desse desejo pois marca um ponto de ruptura na vida institucional de Jacques Lacan e no seu ensino. Nesse momento de virada, Lacan critica os rumos dado ao legado freudiano, dedicando-se a retornar a ética da psicanálise, através do resgate dos conceitos fundamentais: inconsciente, repetição , transferência e pulsão.  Inicia o referido seminário em 1964, nomeando como excomunhão o movimento de expulsão que sofreu a partir do rompimento com a International Psychoanalytical Association- IPA. Tendo sua prática analítica questionada por essa instituição, Lacan não cedeu de sua posição, sendo portanto impedido de atuar como analista didata. Com esse impedimento, ele foi forçado a deixar a Sociedade Francesa de Psicanálise, pois a IPA recusou-lhe permissão para formar analistas.

Sem poder formar analistas e questionado em sua práxis, Lacan se retira da Sociedade Francesa de Psicanálise e funda a Escola Freudiana de Paris. Na primeira aula Lacan anuncia a questão: “em que estou autorizado?”. Essa questão, sempre importante de ser atualizada por cada analista, remete a sua preocupação com a formação do analista e a transmissão da psicanálise. Se as análises por ele conduzidas não poderiam ser reconhecidas como análises didáticas, em que lugar ficava sua transmissão? Lacan questionou ainda: “o que é que funda a psicanálise como práxis?”, e situa o problema da formação do analista dando ênfase ao desejo do analista.

No Ato de Fundação da Escola Freudiana de Paris-1964, Lacan anunciava uma proposta inovadora e pioneira que visava promover o avanço do trabalho de cada psicanalista com os princípios teóricos e a transmissão da psicanálise:

“Aqueles que vierem a esta Escola se comprometerão a realizar uma tarefa submetida a um controle interno e externo: os que assim se comprometerem podem estar seguros de que nada se economizará para que tudo que façam de valor tenha a difusão merecida no local mais conveniente. Para execução desse trabalho, adotaremos o princípio de uma elaboração sustentada dentro de um pequeno grupo: cada um deles se comporá de pelo menos três pessoas e no máximo cinco, sendo quatro a justa medida. Mais- um, encarregado da seleção, da discussão e da saída a dar ao trabalho de  cada um.”

O que percebe-se em 1964, ou em 2023 ou a qualquer tempo, é uma resistência dos analistas a aderir a esse dispositivo de formação e transmissão, e cabe aqui uma provocação: ”o analista se autoriza  por si mesmo”, máxima lacaniana que da o ponta pé inicial para a maioria de nós , analistas supostos- é repensado com um certo desconforto, uma vez que implica na responsabilidade pela própria formação e convoca a uma forma de trabalho não magistral e que convida a não foracluir o inconsciente dessa cartada.

Percebe-se que o jovem analista, dotado da ética de seguir o tripé análise, supervisão e estudo teórico, busca nesse último, dispositivos mais passivos como grupos de estudos e  seminários teóricos, visando uma certa segurança ou proteção nesse percurso que se pretende permanente.  Entretanto, não é de segurança nem de ensino que se trata no campo da psicanálise, muito pelo contrário. Não funcionamos numa estrutura hierarquizada, piramidal onde conhecimentos básicos e elementares precisam ser ensinados pelos mais experientes e assimilados pelos mais jovens para se passar ao estágio seguinte.

Na Ata de Fundação citada acima, Lacan define expressamente: “um cartel é, em primeiro lugar, a condição de admissão  na Escola”. Sendo assim, por que ainda não privilegiamos essa forma de entrada? Estamos levando essa questão para o divã?

Levanto aqui uma hipótese que reside no próprio processo de criação e no seu produto: uma produção escrita. Seria porque Lacan foi assertivo ao propor um dispositivo que convoca o inconsciente ao trabalho tanto quanto a análise o convoca?

Ao inscrevermos nosso desejo em formar um cartel, escolhemos um tema que será trabalhado coletivamente, mas a partir do ato criativo individual. Através da escolha de palavras e argumentos que sustentarão cada ideia ou conceito, fazemos algo de novo surgir do que nos foi dado inicialmente. Agora, teoria, desejo e inconsciente colocados em letra, resta-nos colocá-lo no mundo, fazendo circular as palavras, entregando  o produto escrito para a escola.

No encerramento da IV Jornada da Escola Freudiana, Lacan expressou: ”Gostaria que a prática desses cartéis que imaginei se instaurasse de maneira mais estável na Escola”. 

Munidos de papel, caneta e desejo, o que nos impede de escrever um texto e deixa-lo ir?

 

Referências Bibliográficas:

LACAN, Jacques. Seminário, livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar,2008

___________. Ato de Fundação. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003

___________. A transmissão- Correio Appoa: Lacan- A transmissão- Encerramento do 9 Congresso da Escola Freudiana de Paris(09/07/1978)

 

Aline Dornelles- é enfermeira, especialista em saúde da família e comunidades e seminarista na Escola de Psicanálise Estrutural EPE, Arthur Mendes
Contato: (55) 99719-7086

Por que Escola?
Aline Dornelles

 

“Fundo- tão sozinho como sempre estive em minha relação com a causa analítica- a Escola Francesa de Psicanálise, da qual garantirei, nos próximos quatro anos pelos quais nada no presente me proíbe de responder, pessoalmente a direção. (Ato de Fundação de 1964, por Jacques Lacan) “

 

Escola de Psicanálise... que escola? Importante esclarecer que não se trata da escola descrita pelos dicionários que tratam esse substantivo feminino como “instituição pública ou privada que tem por finalidade ministrar ensino coletivo” ou como “conjunto de professores, alunos e funcionários de uma instituição de ensino” ou ainda como “conjunto de adeptos ou seguidores de uma doutrina, pensamento ou princípio estético”.

A escola de que o presente ensaio trata não é desse substantivo escola do dicionário, tal palavra descreveria a finalidade de departamentos, sociedades, núcleos e institutos de psicanálise. A Escola de Lacan é um conceito e também um grito advertido contra a institucionalização da psicanálise. Para se constituir uma sociedade ou associação de psicanálise, tem que haver elementos identificatórios de pertinência grupal , da mesma forma que um instituto ou um departamento, subvertem ainda mais o conceito de Escola que se pretende examinar aqui, uma vez que se coloca como um espaço de ensino –aprendizagem onde há um mestre objetivando difundir uma teoria.

 

Na Carta de Dissolução da Escola Freudiana de Paris, Lacan justificava a solução encontrada para a institucionalização da psicanálise: é a dis – a dissolução. Dizia ele na Carta: ”Resolvo-me a isso, pelo fato de que ela funcionaria, se eu não me metesse de través, às avessas daquilo pelo que a fundei. Ou seja , para um trabalho, eu o disse- que, no campo que Freud abriu, restaura a relha cortante de sua verdade- que retoma a práxis original que ele instituiu sob o nome de psicanálise no dever que lhe cabe em nosso mundo- que por uma crítica assídua, denuncia os desvios e os compromissos que amortecem seu progresso, degradando seu emprego. Objetivo que mantenho”

 

A frase de Lacan no “Ato de Fundação...”, demonstra a desidentificação coletiva que seu conceito de Escola propõe. Ao dizer “(eu)fundo”, ele se coloca a partir de um lugar de enunciação claro(é seu projeto, sua aspiração, seu ato, no qual está implicado portanto). Em “tão sozinho como sempre estive”, evidencia que não se apoia nas ilusões de um grupo, está advertido de que este ato é solitário como o é a relação com a causa que o move:  a causa analítica.

 

Com esse Ato, ele institui uma formação coletiva fundada na solidão subjetiva de seus membros, o que se demonstra igualmente na lógica do cartel, o qual elegeu como o dispositivo de entrada na sua Escola: um agrupamento que se escolhem entre si com o objetivo de pesquisar e estudar um tema, que culmina em uma produção escrita individual e solitária que é devolvida á Escola.

A Escola é sobretudo um lugar que garante que a psicanálise possa funcionar a partir de seu discurso. Diferentemente de um instituto de formação que garante ao aluno o ensino, a garantia da Escola de Lacan é a manutenção do desejo. A Escola não depende do ensino nem o dispensa, mas aceita e instrui para que ele – o ensino- se desenrole fora dela.(Lacan, 1964). Por esse quase axioma, Lacan assegura a inexistência de um lugar do saber, que não podendo existir no campo clínico , pode ser estimulado no espaço da transmissão.

A Escola é um lugar de um saber submetido a um não-saber, em que ninguém pretende deter do saber do que é um analista, à diferença das sociedades e institutos que estabelecem a formação por cursos que seguem um itinerário padrão, segundo uma pedagogia traçada previamente. Na Escola de Lacan, procede-se diferente como cita Jacques alain Miller: “procede-se pela imersão do sujeito em um meio que agita a falta de saber, e é o que mais importa.”

 

A Escola de Lacan é o espaço para onde apontam os paradoxos que engendram os princípios da formação de um analista: sujeito que é produto de uma análise- e que portanto se forma num tratamento- e do saber que ele deve deter para a realização da prática.

Para finalizar, aponto que não aderem ao conceito de Escola de Lacan, os que pensam que o fim da análise é o fim da transferência. Trata-se de transformar o trabalho de transferência em transferência de trabalho, o que muitas vezes ocorre no decorrer do percurso clínico, porque o inconsciente não é didático e a Escola é também um lugar subjetivo que propicia, mediante seus dispositivos de transmissão, o encontro e o impacto com o real. Nos pretensos fins de análise, quando bem conduzidas levam o sujeito a um rigoroso mal estar na civilização que o forçará a inventar onde nada lhe foi dado, nem interpretado, com o objetivo de fazer que o “não sabido se ordene como o quadro do saber”, como citou Lacan na Proposição de 1967, três anos após seu Ato.

 

Referências:

 

LACAN, J. (1964). Ato de Fundação. In Outros Escritos. Zahar

LACAN, J.(2006). Meu Ensino (A. Telles, trad.). Zahar

SILVA,A.T & BIANCO,A.C.L(2009)O Moises de Freud:Saber e transmissão na Psicanálise. Estilos de Clínica, 14(26) 216-235

ZBRUN, M. A Formação do Analista. Petrópolis, KBR, 2014

 

Aline Dornelles- é enfermeira, especialista em saúde da família e comunidades e seminarista na Escola de Psicanálise Estrutural EPE, Arthur Mendes
Contato: (55) 99719-7086

Tem alguém aí?

​​Felipe Capellari

Analista Praticante EPE

 

Freud e Lacan, em uma operação conjunta e organizada, ainda que inconscientemente, mataram o sujeito. Mas não qualquer sujeito, e nem mesmo um sujeito. Mataram o sujeito. No primeiro ato, Freud o desmantelou, o dividiu. Chegou até mesmo a abrir a cova, mas hesitou. Lacan o deslocou para o intervalo, entre significantes. E, quando foi enterrar, não encontrou nada para colocar no caixão. Assim percebemos, no campo da psicanálise, o desenrolar do processo que chamamos “descentramento do sujeito”.


Freud é citado em artigos de filosofia como um dos agentes do descentramento do sujeito. Quase não se vê esse conceito nas obras de teoria psicanalítica. Ao demonstrar que muitas vezes nossas ações são influenciadas por impulsos inconscientes, o pai da psicanálise abalou a ideia de uma identidade estável e autônoma do eu. É essa ruptura que sinaliza o início do movimento de descentramento do sujeito dentro do campo da psicanálise. Freud, porém, teria claudicado, o que fez com que ficasse para Lacan a tarefa de terminar o serviço. A hesitação de Freud se verificou ao reafirmar a autonomia do sujeito. Sua teorização coloca o Eu, o Inconsciente e o Isso lado a lado, conformando o aparelho psíquico, localizado dentro dos limites que demarcam o indivíduo. Este, ao agir inconscientemente, ainda assim age de acordo consigo mesmo. O inconsciente é seu, é parte de si mesmo. Essa condição de sujeito tem decorrências diversas das da proposta de sujeito lacaniana, com veremos a seguir. Sem esmiuçar tais decorrências, podemos, por exemplo, ver sua expressão em uma proposta de fim de análise que encaminha o indivíduo a se aproximar de sua (suposta) essência. Ou ainda, em proposições de analistas transmitentes contemporâneos nas quais se lê que aquilo que vem do Isso, portanto de nós mesmo, devemos tentar atender ao máximo, pois é a expressão de nosso desejo. A parte que não puder ser atendida, sendo a realidade a maior
limitadora, deve ser elaborada. Esta seria nossa sina: lidar com os desejos, que, apesar de nossos,
não os controlamos.


Lacan, ao apresentar sua teoria significante, desloca o sujeito para o intervalo, o intervalo entre os significantes. O sujeito é vazio. Com esse movimento faz uma verdadeira bagunça. Some com o cadáver para o qual Freud havia aberto a cova. Exige do estudante pretendente a analista que se aproxime da filosofia e da linguística sob pena de sua teoria ser qualificada, na melhor das hipóteses, de difícil entendimento. Houve quem o recomendasse um psiquiatra. Não era o caso. Lacan estava apoiado nos desenvolvimentos de sua época no campo da linguística que foram tão revolucionários que se espalharam para outros campos do conhecimento. Entre eles, naturalmente, a filosofia. A teoria significante de Lacan encontra sua particularidade no fato de que retira a função de representação do significante. Um significante encontra sua função na relação com outro significante. Não é necessário muito esforço para perceber o tamanho da empreitada intelectual para acompanhar tais ideias. Suas teorizações dialogam com o campo da teoria do conhecimento (e, diga-se de passagem, fazem um verdadeiro rebuliço por lá). Muito distante da psicanálise, alguém poderia dizer, com certa razão. É que esse movimento de esvaziar o sujeito e afastar a representação, se feito sem buscar os suportes necessários, pode tanto soar como uma teoria difícil de entender quanto como loucura. Ou, ainda pior, ser lido como poesia.


Os esforços de descentramento do sujeito tiveram, dentro do campo de cada autor, seus objetivos. Lacan era psicanalista, seu foco era a clínica e os clínicos. Aplacar o sofrimento e os sintomas do analisando é o objetivo dos encontros no setting. Lacan percebeu que o indivíduo, ou falasser (aquele que fala para ser), sofre em decorrência de sua extrema adesão à imagem de si e aos significantes que o designam. Ao terminar o trabalho que Freud iniciou, Lacan dissolve qualquer possibilidade de uma identidade autônoma e estável do sujeito. Fruto da relação significante, o
sujeito perde qualquer essência que o pudesse qualificar de forma definitiva. O sujeito de Lacan não está contido no indivíduo. A distinção entre indivíduo e sujeito é o que demarca a ruptura com a teoria freudiana. Nesse sentido, a ideia de responsabilidade subjetiva precisa ser reformulada, apenas para apontar uma das decorrências clínicas.


A proposta de descentramento do sujeito no campo da psicanálise encontra justificação em nossa época. Quadros de crise de ansiedade, narcisismo, sociopatia e tantos mais são situações que, ainda que eventualmente não façam parte das estruturas de sofrimento propostas pela psicanálise estrutural, surgem no discurso e nas manifestações sintomáticas que demandam a atenção do analista. Cabe então pensar como a busca desenfreada por um eu, enquanto essência que estabiliza, que ordena e justifica nossa existência, pode ser também a causa desses e de outros quadros, causa de sofrimento. O falasser apresenta, com muita frequência, a tendência de aderir a discursos de
maestria, nos quais a causa de seus infortúnios supostamente se deve a não conexão com sua essência, com seu propósito, com aquilo que viria em seu favor como fonte de ordenação e, por consequência, felicidade. Na outra face da mesma moeda, vemos a aposta em abrir mão de todo e qualquer sentido que não surja da exaltação de si mesmo, sem recorrer a algo externo. A teoria significante de Lacan parece ter potencial para ser usada como uma forma sofisticada de sair dessa dicotomia. A interdependência dos significantes denota a interdependência dos sujeitos. Ou seja, nosso foco não seria mais lidar com nossos desejos em um mundo hostil a eles. Mas passa, de certa forma, a ser uma questão anterior a essa. A pergunta em evidência é: onde ou como isso tudo se dá? No campo da linguagem, na esfera da ordem significante. Se o sujeito em questão habita na linguagem, passa a ganhar evidência uma outra questão pra além do desejo: a relação. Um problema que cabe ao analisando elaborar, sem aconselhamento moral por parte de analista, naturalmente.

Ponderações iniciais sobre a formação do analista, pensadas a partir do artigo “O furo, uma invariável; o ‘impossível’ intrínseco ao sistema simbólico” de Gabriela Mascheroni.

​​​​​Felipe Capellari

Este é um texto escrito para o cartel “A formação do analista” da EPE, Escola de Psicanálise Estrutural. Propõe pensar algumas ponderações iniciais sobre a formação do analista a partir do artigo de Gabriela Mascheroni. O texto de referência foi escrito em língua espanhola, portanto, o fragmento aqui citado consiste em uma tradução livre para
fins de estudo. 


Inicio trazendo uma citação em que a autora trata da nossa tarefa como psicanalistas levando em conta os seus desenvolvimentos anteriores. Cabe ressaltar que o texto-base não trata de forma central da formação do analista. Não irei desenvolver cada termo utilizado pela autora, levando em consideração que essas ponderações que proponho encontram seus principais leitores em colegas que já possuem familiaridade.

A citação é a seguinte:

O discurso opera com e porque há um esqueleto lógico que o sustenta, uma escrita. Nossa tarefa como psicanalistas consiste em revelar esse esqueleto lógico que sustenta o sintoma, a legalidade inconsciente que está operando sem ser sabida. Para isso, realizamos diferentes operações significantes, para depois fechar e escrever a fórmula do sintoma. Faremos isso localizando as constantes no discurso, as coordenadas metafóricas e metonímicas, as repetições, as discordâncias — levando em conta que a interpretação deve ser ambígua ou equívoca para não ser diretiva — para modificar a legalidade automática da repetição, estruturada em pelo menos três gerações. Revelada a fórmula que sustenta o padecimento (elementos mínimos que se combinaram para que algo se repita), reduzindo essa lógica à sua mínima expressão, pode-se modificar o impossível — na medida em que era o que não era admitido em determinada ordem que estava operando. É preciso escrevê-lo porque o significante está opacificado, mas podemos lê-lo porque é meio-dito. Pode surgir outra dimensão de impossibilidade, própria do sistema, mas que já não produza sofrimento. Ou seja, possível ou impossível é o resultado da posição que se assume em relação a certo ordenamento legal e histórico do caso particular, e que era vivido por quem sofria como um impossível atravessado pelo discurso substancialista: “o que é”, ou seja, um sofrimento montado em um vínculo ao ser que ocultava a falta no ser.

 

Escolhi esse trecho como citação porque ele está localizado originalmente na parte do texto que encaminha aquilo que fora tratado ao tema da clínica, nossa tarefa como psicanalistas. Pensar a formação do analista tomando a sua tarefa como a ponta do novelo que escolhemos para desfazer o nó me parece um bom caminho.

Ao longo do texto, a autora sustenta que o sofrimento surge como consequência da instauração do discurso e da adesão significante. O ordenamento legal do caso particular, que surge de maneira sincrônica à instauração do discurso, define o possível e o impossível. A tarefa do analista seria então revelar a estrutura lógica e sua legalidade que estão operando sem serem percebidas, e gerando o sintoma. Lembremos que a adesão significante é a mãe do sintoma, e sua maneira de operar é na sombra, de forma não consciente.

O que é necessário, considerando o que lemos até aqui, por parte daquele que deseja executar essa tarefa? Para revelar a estrutura lógica, é necessário que o analista tenha condições de identificá-la. Bem, poderíamos dividir essa etapa em duas, já que se pode falar em estrutura enquanto ordem simbólica, operatória significante, em Lacan, e estrutura enquanto estrutura lógica particular, o caso em questão - aquilo que somente saberemos após ouvir a história que sai da boca do analisando. Nesse sentido, fica evidente a necessidade de conhecimento da teoria significante de Lacan e suas implicações, principalmente a alteração drástica na forma com a qual nos relacionamos
com o que quer que seja, ênfase aqui na palavra relação, dada a retirada do núcleo essencial do significante. 

 

Surge também a necessidade de saber “ouvir estrutura”, que consiste em perceber a legalidade, aquilo que ordena a relação dos significantes no caso particular. Não se opera sobre o significado ou o sobre o mito pessoal, mas sim na forma como as palavras se relacionam. Por exemplo, se uma analisante diz: “eu gosto de ir em direção aos homens em uma festa, mas não vou porque isso não é o certo para uma mulher”, Uma expressão da legalidade desse discurso se percebe quando o aponta “aquilo que não é certo”, não é certo no discurso em que é proferido. Mas isso é apenas um discurso e sua legalidade, e o analista vai seguir investigando a legalidade por trás de cada significante.


A revelação do esqueleto lógico abre o potencial de mudança do discurso. Nesse caso, seria possível questionar como a pessoa chegou à conclusão do que é certo ou errado para uma mulher, ou mesmo o que é uma mulher. Buscar quais outros significantes dão suporte a essas afirmações — lembremos da retroação significante S1→ S2. Operar sobre o mito, por sua vez, seria tentar chegar a alguma conclusão sobre se de fato é certo ou errado um ou outro comportamento — caminho indesejável quando o que se tem mente é fazer o analisante se dar conta da própria operação significante e do potencial de liberdade diante dessa operatória que pode advir ao se afrouxar as adesões do tipo “isso deve ser assim ou assado”

A contemplação via estudo dessa abordagem pode eventualmente parecer suficiente para se iniciar os atendimentos, uma vez que não são de difícil compreensão. Pode parecer justo o questionamento de por que razão, para conduzir a análise de outro falasser, seria preciso, por parte do analista, ter sua estrutura particular exposta em uma análise pessoal. Porém seria ingênuo ignorar o potencial insidioso da adesão significante nos discursos que são proferidos, e que, portanto, condicionam. Ou seja, o pretendente a analista está, sem dúvida, à mercê de seu próprio discurso e, sem exposição ao ato analítico, não operou sobre suas próprias fixações. Por atuarem de forma inconsciente, essas adesões têm a marca da resistência. Assim, aquilo que opera de forma inconsciente, e, portanto, resiste, não virá à luz da consciência apenas pela via da contemplação e do entendimento.


A exposição àquilo que rege nosso próprio discurso nos dá familiaridade e espaço de liberdade para fazer a devida “escuta da estrutura” quando estivermos conduzindo uma sessão. Liberdade aqui em relação à adesão que nos era antes regente inexorável. Não que agora tenhamos ganho liberdade total e possamos voar como o super-homem, mas sim um certo espaço de liberdade, um afrouxamento das cordas. Resgatando o exemplo anterior, pensar a clínica sem essa familiaridade mínima por parte do analista certamente levaria a falha, que pode se fazer presente na tentação de buscar tratar do assunto de se é ou não adequado que uma mulher vá na direção de um homem em uma festa, em vez de olhar para a legalidade do que está sendo dito. Isso se dá na forma de um assédio quase irresistível, uma vez que inconsciente. Pode ser que o analista se dê conta, em algum momento, sempre depois, que esqueceu da estrutura, mas também pode ser que o analista leve o assunto para uma seção clínica, por exemplo, e diga algo do tipo: “Este caso é muito sério, ela pensa que pode ir na direção dos homens!!!”. 


Outro ponto importante, e que marca a presença do estruturalismo de Lacan na psicanálise, é o fato de que, para além do trecho “não vou porque isso não é o certo” do exemplo anterior, também vemos a marca da adesão significante no trecho que o precede: “Eu gosto de ir em direção aos homens em uma festa”. Talvez não seja muito comum pensar que essa afirmação comporte causa de sofrimento, já que é uma afirmação da identidade da pessoa. Mas, por trás de “Eu gosto de tal coisa”, há quase sempre a presença do verbo ser em sua função ontológica: “Eu sou aquela que gosta de tal coisa”. Mas temos que, o espaço de liberdade que potencialmente se desvela após a exposição ao ato analítico estrutural não remete a uma identificação do falasser com aquilo que ele acredita ser si mesmo. Isso seria apenas outra face da mesma prisão. 

 

A dialetização e a exposição ao ato vão fazer com que a analisante do exemplo se depare com o fato de que ela já fora aquela que gosta quando os homens vêm em sua direção, aquela que gosta de ir, aquela que quer ficar só, e por aí vai. Ou seja, qualquer rótulo que ela tente colar com a inscrição do que ela é vai invariavelmente cair, assim como tantos outros já caíram, e ela, sistematicamente, esqueceu. É que, de fato, não há onde colar o rótulo, por isso, ele cai. Ou, dito de outra forma, tudo com que nos relacionamos não é mais que o rótulo. É por isso que a denúncia de incoerência que o analista faz quanto ao discurso do analisante não é um julgamento, mas uma tentativa de desvelamento.


É por isso também que o reforço da identidade com frases do tipo: “Você deve encontrar a sua essência e ser quem você é, apesar das dificuldades” não levam o tratamento até o fim. Podem encorajar o analisante a não dar tanto valor a um discurso que invalide o seu próprio, mas, ao reforçar a identidade, reforça algo que nunca esteve lá, nem nunca vai estar. Quando o rótulo desliza, e é sempre uma questão de tempo, o falasser se depara novamente com o sofrimento, fruto de não ter elaborado a falta-em-ser. Isso se dá porque, dada a interdependência significante, a queda de um significante, que nesse caso compunha a suposta identidade do falasser, reordena todo o discurso com qual se relacionava. É como um castelo de cartas ou como um caleidoscópio, não há como mexer em uma peça sem movimentar diversas outras. Essa movimentação toda quase sempre toca em pontos críticos, que o analisante não quer que mudem, devido à exposição, novamente, à falta-em-ser que dela decorre.


Outro motivo válido para se manter a frequência do pretendente a analista em análise é o de que, além dos avanços desejados em uma análise, a sucessão de encontros traz familiaridade com tudo o que está em jogo. Assistir um analista manobrando o ato conduz tanto ao andamento do seu próprio processo analítico quanto à transmissão daquilo que está em jogo. Neste sentido, o da transmissão da psicanálise, análise pessoal e estudo teórico compartilham a tarefa.


Bem, este texto é breve e aponta apenas uma parte das questões que considero relevantes no tema da formação do analista que podem ser extraídas do texto de Mascheroni. Apesar da brevidade, sinto segurança em defender que dificilmente haverá análise e, portanto, analista, se quem conduz a experiência não foi exposto à análise. Também se conclui que a insidiosidade da forma como a adesão significante se impõe não deveria, a meu ver, ser menosprezada a qualquer tempo. Ou seja, vejo bons motivos para defender a frequência em análise mesmo após já se estar conduzindo análises.  Mesmo porque ter ganho um mínimo de familiaridade com o que está em jogo, a ponto de poder iniciar a condução de análises, não é o mesmo que afirmar o fim de sua análise pessoal, assunto que penso relevante na temática da formação do analista — ainda por tratar. Também vale lembrar que o solo em que piso para produzir estas ponderações é o da psicanálise estrutural.

Resenha do artigo “Representação versus Significação”, de Martin Mezza, para a Sessão Teórica da EPE, Escola de Psicanálise Estrutural

​​​Felipe Capellari

O artigo Representação x Significação de Martín Mezza trata da desambiguação desses termos no âmbito teórico da psicanálise. Releitura que vai, naturalmente, interferir na ética clínica. Para isso, o autor se utiliza das elaborações de Thomas Kuhn sobre a noção de paradigma científico. O trabalho de Kuhn é feito a partir da oposição entre ciência normal (evolucionista) e revoluções científicas. Na visão de Mezza, a confusão/indistinção entre a doutrina do significante, de Lacan, e a teoria da representação, de Freud, é fruto de uma leitura evolucionista da obra lacaniana, que o autor chama de freudolacanismo. Em defesa da desambiguação, afirma que Lacan, na verdade, ao apresentar sua doutrina, estava fazendo uma revolução científica no campo da psicanálise.


Esta resenha se propõe a tentar capturar a ideia central do artigo sem focar tanto na argumentação e nas citações que servem de suporte para a comprovação da tese do autor. Vamos percorrer os pontos que entendi mais relevantes na tese de Mezza. O autor traz para o centro da conversa a questão do processo de simbolização do ser, ou processo dialético da consciência de si, ou, ainda, dobra do discurso sobre si mesmo


Tomemos por base o trecho a seguir do artigo: “No processo dialético do ser há algo que escapa à totalização da razão”. Tomaremos o termo “processo dialético do ser” como movimento em direção a uma compreensão mais rica e complexa do ser e da realidade, sua ontologia.

O termo “totalização da razão” será abordado com base no que segue:


(...) processo de voltear o objeto, buscando iluminá-lo de todos os ângulos possíveis”. O termo “totalização da razão remete a uma forma de tratar o conhecimento científico que parte da noção de que os conceitos estudados nunca podem ser pensados de forma excisada, isolados, colocados fora de seu contexto. Eles devem, portanto, ser imaginados sempre como relações que se conectam na construção de um todo concreto e dinâmico.1


E quanto a esse “algo que escapa”, consideraremos:


Como último momento da totalização, deve-se insistir que ela, tal como o conhecimento profundo, é um processo interminável: nunca será possível conhecer a totalidade real, porque algo sempre irá ficar de fora.
Sempre há uma exterioridade em relação à totalidade. Por causa disso, a tarefa científica rigorosa consiste em sempre tentar captar e incluir esse ‘algo mais’ que está de fora da análise. Por isso, ressalte-se, tratase aqui não de totalidade, nem de totalismo, mas sim de totaliz-ação, entendida sempre como processo que nunca se esgota completamente. A realidade é sempre mais rica do que o conhecimento que a gente tem dela. Há sempre algo que escapa às nossas sínteses. Portanto, ‘a totalidade é apenas um momento de um processo de totalização’.1

Considerando a exposição acima, a frase “No processo dialético do ser há algo que escapa à totalização da razão” pode ser lida com o sentido de que uma busca pela compreensão da ontologia do ser, que leva em conta a noção de que os conceitos nunca podem ser concebidos de forma isolada mas sim em seu contexto, e dada a infinidade de contextos possíveis, termina por se deparar com esse algo que sempre escapa às sínteses.


O método cartesiano, em oposição à ideia de totalização da razão descrita anteriormente, crê na existência de elementos absolutos no mundo objetivo, ainda que as aproximações sucessivas da experiência apontem no sentido oposto.


Por isso, a totalização é um processo anticartesiano, no sentido de que, em vez de dividir o tema de estudo em elementos separados, desconectados e, acima de tudo, “simples e fáceis”, busca englobar o objeto dentro de uma totalidade e, nessa inter-relação, complicar as categorias trabalhadas, dotá-las de sentido e de contexto, de modo a negar, em contraposição ao cartesianismo, qualquer significado universal para o que foi pensado.1


Agora, munidos de uma argumentação que buscou enriquecer o conceito de “algo que escapa” ou “efeito de perda”, podemos seguir analisando o trecho a seguir do artigo:


(...) esse efeito de perda não deve ser localizado por fora da razão, na coisa em si, que resiste à simbolização (leitura freudolacaniana do real), nem em qualquer instância metafísica passível de imaginação, mesmo que seja a animalidade biológica…


(Impossível deixar de reparar que o autor equipara nesse trecho a “animalidade biológica” a “uma instância metafísica passível de imaginação”.)


O texto argumenta que Freud, diante desse efeito de perda, desse “algo que fica de fora” que escapa à totalização, “aporta mais um capítulo da dialética da consciência de si”. Esse aporte nada mais é do que seguir substantivando o ser numa lógica cartesiana. Freud teria feito isso ao localizar aquilo que escapou à totalização seja na “coisa em si” (base concreta, real e impossível de ser conhecida diretamente, que dá substância para as coisas e para o sujeito), ou, ainda, no que o autor do artigo chama de “biologização amarrada através da doutrina das pulsões”.


Porém, a leitura de Lacan proposta por Mezza insiste que: “esse efeito de perda não deve ser localizado por fora da razão,... senão no próprio buraco que se produz quando o discurso se fecha sobre si mesmo”.


O que seria então localizar o efeito da perda no próprio buraco que se produz quando o discurso se fecha sobre si mesmo?


Segundo Lacan, nas palavras de Mezza, isso que escapa é produto do próprio processo discursivo, sem uma substância fundamental como uma ‘coisa em si’ resistente à significação. A descoberta de Freud faria parte desse processo de simbolização do ser, e o descobrimento freudiano repara no sujeito como descentrado, ainda que sua teorização posterior caminhe na direção oposta.

A seguir, apresento um possível eixo de entendimento do sentido do termo sujeito descentrado:

Com o conceito de formação discursiva, Foucault nos mostra que os enunciados diferentes em sua forma, dispersos no tempo, formam um conjunto e passam a se referir ao que posteriormente será a referência de um único e mesmo objeto. Neste sentido, ocorre o descentramento do sujeito (bem como de qualquer outra substância ou objeto), pois o que chamamos de sujeito nada mais é que uma unidade discursiva que foi constituída pelo conjunto de enunciados que nomeavam e recortavam algo. No entanto, não há nada que justifique que esses enunciados estivessem juntos, nenhuma força unificadora, a não ser o espaço discursivo mesmo e as relações de poder de um dado campo. Isso significa dizer que os discursos não se fundam na existência concreta de um sujeito e sim no próprio campo semântico que o instaurou e que depois será usado para validar ou não ontologicamente o que é ou o que não é o objeto de referência. A unidade do objeto, no caso, o ‘sujeito’, é, pois, resultado de um jogo de regras também discursivas.2

Aqui, portanto, a ideia de descentramento do sujeito caminha de mãos dadas com a retirada de qualquer substância essencial que lhe pudesse dar concretude. O discurso ao mesmo tempo aborda e funda o conceito de sujeito sem que necessite de qualquer existência concreta que o suporte. Ao considerar que o que instaura o sujeito é o próprio discurso, não há mais que se buscar qualquer substância. Cai, portanto, naturalmente, a lógica em que uma teoria de representação pudesse se apoiar, uma vez que não há o que possa ser representado pra além do próprio discurso que o representaria. As duas teorias que aqui se pretende desambiguar não partilham da mesma noção de realidade, ou de como esta se dá para o indivíduo. A cisão é mais fundamental, é anterior às teorias, daí a necessidade de desambiguação.


Tem-se, de um lado, uma teoria da representação que se põe a explicar como o sujeito representa os objetos com os quais se relaciona. Objetos esses que, assim como o próprio sujeito, são fundados em uma substância impossível de ser conhecida, mas não por isso menos existente, um real concreto e com uma realidade transcendente à linguagem. E, de outro lado, a teoria significante propondo que aquilo que tomamos como existente não tem outra fonte de instauração que não o próprio discurso que a relaciona, sendo, inclusive, o sujeito também instaurado pelo discurso.


O autor ressalta que a ideia de correspondências biunívocas entre realidade psíquica e realidade exterior, percebidas na teorização de Freud, é, para Lacan, parte do registro imaginário. Lacan teria também criticado a teorização de Freud a partir da sua associação com o idealismo/realismo. Nesse ponto, uma possível leitura pode se dar no sentido de que as demarcações de idealismo/realismo têm como pressuposto o sujeito do conhecimento, sujeito esse que vai ser descentrado pela doutrina lacaniana.


O texto segue apresentado os argumentos e as citações que buscam comprovar a necessidade de desambiguação. Não serão replicadas aqui nesta resenha tais citações e argumentações, uma vez que esta se propõe mais exclusivamente a tentar capturar a ideia central do artigo, aquilo que justifica dizer que Lacan fez revolução científica ao
apresentar sua doutrina.

Um ponto importante de ser visto, porém, é o argumento de que ainda que Lacan opere sua teorização apoiado no campo da linguística, sua teoria do significante nasce em relação de oposição com o signo linguístico e com tudo o que dele ainda poderia sugerir a ideia de representação. “Aqui, o significante não representa a realidade ou o significado, senão que apresenta a questão do seu lugar na realidade e na produção do sentido.” O significante de Lacan assume as características de traço mínimo da língua, que, carecendo de significado ou referência específica, se organiza de forma negativa (oposição e distinção), e sua combinatória está regida por uma série de regras. Os significantes são o que os outros não são. O significante opera com uma lógica negativa, não possui significado em si, sua significação se dá somente na relação de oposição e distinção. O sujeito é instaurado por essa trama, essa relação entre significantes. O sujeito possui então uma base negativa, ou, dito de outra forma, não possui base concreta fundamental, ou essência.


Essa ideia de que o sujeito surge do nada é por demais revolucionária para uma cultura que opera em geral dentro de uma lógica cartesiana. A incidência da ideia de concretude das coisas é perceptível na estrutura que organiza nossa ideia de si e de “como as coisas devem ser”. Vale lembrar que este “como as coisas devem ser” atua como ancora para o neurótico — mudar tais coisas é, para ele, sinônimo de angústia. Ainda que possamos entender que essa concepção de realidade é a causa de nosso sofrimento, é essa mesma concepção de realidade que dá ao indivíduo sua segurança (ou fantasia de) enquanto sujeito. Uma mudança de paradigma nesse âmbito é muito profunda, mas não por isso menos interessante para quem busca uma melhor relação com sua condição humana. É compreensível o surgimento de resistência em um processo tão crítico. Mas é aí, nesse ponto crítico, em que o autor se detém para justificar sua tese.


Para concluir, podemos ponderar que a descoberta freudiana toca na questão da descentralização do conceito tradicional de sujeito racional, consciente e autônomo na medida em que verifica as influências de um inconsciente que opera fora do controle desse sujeito. A verificação desse inconsciente que incide bem que poderia ter sido o gatilho para que as ponderações freudianas seguissem a trilha do “esvaziamento” do sujeito. Porém ao teorizar sobre sua descoberta, Freud recoloca o sujeito no centro. Agora esse sujeito é, sim, dotado de um inconsciente, sendo este gerado a partir das interações com um mundo concreto e real. Tanto o sujeito quanto os objetos da experiência que fundam o inconsciente freudiano passam ilesos pela teoria de Freud, que tinha, segundo Lacan, o potencial de alavancá-los à condição de instauradas pelo discurso. Mas, nesse momento, segundo Lacan, Freud perde a oportunidade de esvaziar o sujeito e segue uma tradição de substantivação do ser, colocando-o na legenda do real, a “coisa em si”.


A apreensão do insight que o texto insinua é capaz de por si só retirar a necessidade de comparar e explicar detalhadamente as especificidades da doutrina do significante e da teoria da representação com a finalidade de perceber sua incomensurabilidade. A distinção que dá objeto ao insight é mais fundamental. Se o próprio sujeito, assim como os objetos, é instaurado pela estrutura discursiva, não faz sentido seguir uma trilha que supõe sua concretude. O cerne do debate então recai sobre a seguinte questão: “O sujeito, enquanto aquele que se apropria da realidade, possui algum nível de concretude ou não?”. Se possui, então cabe o debate idealismo/realismo enquanto forma de tentar elucidar a realidade concreta do objeto observado sem, porém, duvidar da realidade do sujeito observador. Se o sujeito não possui uma realidade anterior ou, nas palavras de Lacan, é instaurado pelo próprio discurso, então a ideia de representação da realidade perde objeto.

Se considerarmos a ética da clínica lacaniana como o objetivo de promover a máxima desadesão de S1, e sendo S1 as marcas ontológicas do sujeito, os “eu sou x, y, z…”, de saída já fica evidente a impossibilidade de conjugar as duas teorias na mesma ética. Só podemos falar em desadesão daquilo que funda o sujeito por dentro da doutrina lacaniana. Em uma abordagem que dá concretude às coisas, não cabe propor qualquer tipo de desadesão, já que as coisas (e o sujeito) são reais e concretas e, portanto, postas e imutáveis. Poderíamos no máximo flexibilizar a forma de representação dessa realidade posta.


Lacan, com sua teoria, aniquila qualquer concretude que se possa atribuir ao sujeito e, por consequência, abre ao máximo possível o potencial da desadesão de S1. O analisante sofre justo na medida em que se comporta como se seus S1s fossem concretos, fossem de fato sua ontologia. Essa dialética, ideia de si fundada em adesão a traços significantes versus a constatação do vazio ontológico, seria o campo onde o sofrimento surge.


Referências adicionais:
1 Totalização e Contradição: Aportes Epistemológicos para uma Investigação Interdisciplinar em Direitos Humanos. 2018.
2 Sobre o descentramento do sujeito: transgredindo os limites kantianos. Suze de Oliveira Piza. Izabela Loner Santana.​

A formação do analista - cartel EPE

Marta Zbrun, A formação do analista

Patrícia Mezzomo

Marta traça uma trajetória histórica e teórica da psicanálise, desde sua origem com o mestre vienense até o fracasso do Passe, da escola lacaniana.


Entender o tema da formação do analista, nos implica necessariamente em fazer um mergulho profundo nessa tripla jornada: história da psicanálise, teoria psicanalítica e análise pessoal.


“O psicanalista se forma, e isso é um fato e uma necessidade. Não há psicanalistas natos; se houvesse, não seria preciso formá-los, seria suficiente descobri-los.”


E para que um analista se forme como tal, é necessário que ele possa adquirir certas condições subjetivas que não se resumem a uma aquisição de um saber. É necessário uma transformação do seu ser.


Ao longo do tempo a própria ideia de como se forma um psicanalista vai sendo modificada concomitante ao surgimento de novas construções teóricas, o que nos confirma ainda mais, o elo talvez indissociável, entre o analista e a sua análise


Em em seu texto de 1976, a “Proposição sobre o psicanalista da Escola”, Lacan escreve que o psicanalista passou a ser definido como o resultado de sua análise. No texto de Marta encontramos a proposição: Não há psicanalista sem escola!!


Análise e escola passam então a caminhar de mãos dadas, se vistas sob essa ótica da formação do analista. E a escola seria o espaço para a produção deste analista. O lugar de um saber submetido a um não-saber, em que ninguém pretende deter o saber do que é um analista.


A Escola produz a formação do analista, e a formação psicanalítica supõe levar uma análise até seu fim.


Pode-se então pensar a Escola como um conceito da psicanálise, conceito para ser posto à prova, porque é um experimento que diz respeito a outra experiência, a experiência analítica e seu dispositivo, inventado por Freud, ou seja, a forma Escola compara-se à estrutura da experiência da análise.


E para finalizar Marta conclui: Ora, se a finalidade da formação de um psicanalista não consiste somente na aquisição de um saber, mas também em ter adquirido certas condições subjetivas, uma transformação do ser do sujeito que nunca é somente íntima, então, para mim, ela se tornou pública. Então, lá onde no início da análise tínhamos um gozo autista a análise faz aparecer um analista como efeito de significado, operando sobre os sintomas para produzir um efeito especial de significação. A análise fará aparecer uma letra, um resto.

Como trabalha um psicanalista? J.D. Nasio

​​Pedro Paschuetto

Resumo - Como trabalha um psicanalista?


A formação do analista


A técnica analítica


Muito se tem no imaginário de que a caricatura do analista é aquela que fica eternamente em silêncio enquanto a outra pessoa fala, estando o analista inicialmente em uma atitude passiva perante o analisando. Esta é uma visão incorreta da qual devemos nos ater. 


Aqui quero trazer à baila a evidência de que o analista trabalha ativamente no processo e que portanto dirige assim o tratamento, não da forma habitual com a qual estamos acostumados a entender uma técnica de condução linear de um trabalho, como na construção de uma casa (projeto, início, meio e fim da obra), mas sim como um instrumento, um operador, um catalisador dos processos inconscientes ao analisando. 
Podemos dizer que o desejo do analisando e o desejo do analista são a matéria prima do trabalho analítico, sendo difícil saber onde começa um e onde termina o outro. A intervenção do analista, seja nas suas mais variadas formas (silêncio, pergunta, escansão, corte, etc.), deve ser considerada como uma expressão, uma manifestação do campo que o setting sustenta enquanto o processo analítico acontece.


J.D. Nasio aponta para o cuidado do analista em não escorregar no desejo de tentar dominar a direção do tratamento, pois o domínio da direção do tratamento pode facilmente estar embuído do desejo pessoal do analista em achar que sabe para onde e o quê é que o analisando deve tratar para assim se “curar”. Uma postura de expectativa pelo que está porvir na próxima palavra faz da figura do psicanalista uma função, na qual favorece os processos inconscientes do analisando de serem expressos.


Montar o cenário para que a verdade apareça


A formação do analista implica necessariamente a sua própria análise, pois é a partir dela que o inconsciente do analista enquanto analisando estará em constante formação. Esta formação da pessoa que passa pela experiência do setting cria um lugar que permite perceber e capturar manifestações do inconsciente antes pouco ou nada observadas.

 

Na postura-função de analista: quanto mais desarmado, quanto mais inocente e quanto mais exposto aos efeitos do inconsciente, maior a probabilidade de criar no analisando este lugar para que ele cada vez mais comece a notar estas próprias manifestações, favorecendo assim o terreno para que a verdade apareça.


Direcionar o tratamento, em outras palavras, é imaginar a fala de um analista para seu analisando com o seguinte teor:
Basicamente esse trabalho criará um “lugar”. Esse “lugar” o fará notar pouco a pouco e paulatinamente as manifestações do inconsciente que estão lhe causando estes sintomas, dos quais o fizeram me procurar. À priori, não sabemos quais assuntos, sentimentos, falas e emoções serão sentidas e expostas, mas tudo que se manifestar será uma vazão aberta por esta comporta, diminuindo a pressão dos sintomas que lhe causam mal estar. As consequências deste processo vão subverter drasticamente a noção da identidade que carrega, em outras palavras, a pessoa que você pensa ser. Tirará seu chão; fará escolher caminhos que jamais considerou percorrer; perceberá se expressando de uma forma inédita; novas lógicas de pensamentos serão desenvolvidas.


Segundo Oswaldo Montenegro em sua música “A lista”: “Onde você ainda se reconhece - na foto passada ou no espelho de agora [...] 

Quantos segredos que você guardava - Hoje são bobos ninguém quer saber - Quantas mentiras você condenava - Quantas você teve que cometer - Quantos defeitos sanados com o tempo - Eram o melhor que havia em você - Quantas canções que você não cantava - Hoje assovia pra sobreviver 

 

As diferentes fases do tratamento: retificação subjetiva, sugestão, neurose de transferência e interpretação 

Primeira fase: retificação subjetiva


Esta fase ocorre durante as primeiras entrevistas, onde a pessoa pretendente analisanda descreve sua realidade inscrita numa família, num casal ou numa situação profissional estando em sofrimento e que a fez chegar até nós. O que importará nestes momentos será a relação que a pessoa mantém com os seus sintomas, quais sentidos ela atribui ao lugar no enredo que ela se colocou de forma inconsciente ou consciente, o que até aquele momento está estabelecido e que ela não consegue “ver saída”.


Por retificação podemos entender como uma correção de algo, “tornar direito”, “tornar reto” e subjetivo algo relativo ao sujeito, próprio dele, particular e individual. Logo, essa retificação do(a) analista visa intervir nesta relação estabelecida que o Eu da pessoa tem com os seus sintomas, pois agora ela recorreu a outra pessoa para ajudá-la a sair de seu sofrimento, permitindo uma possibilidade dela se colocar minimamente de forma alterada perante seus sintomas, forma esta inaugurada pela retificação subjetiva.


Geralmente a pessoa chega a um(a) analista consciente de seu sofrimento e alguns sintomas, porém de forma inconsciente sobre o que os causaram. Embora seja alta a probabilidade da pessoa não saber ao certo, é importante distinguir bem o motivo pelo qual a pessoa vem nos consultar durante as primeiras entrevistas, ou seja, a demanda implícita presente na análise, por mais que essa demanda implícita nunca seja explicitada.


Segunda fase: fase inicial constituída por dois Atos psicanalíticos: o Ato de aceitar analisar o paciente e o Ato de enunciar a regra fundamental (livre associação).


Através desses dois atos, o(a) analista transmite ao paciente sua própria relação simbólica com a psicanálise, sem que ele se dê conta disso. Principalmente estes atos veicula a experiência que o(a) analista teve com sua própria análise, sendo essencial na instauração do quadro transferencial ou sugestão. Essa sugestão agirá de forma inconsciente e podemos entendê-la como algo que é transmitido ao paciente como um compromisso, uma carga de tempo e investimento que o analista tem em relação com este tipo de tratamento, considerado o primeiro objeto de transferência com o qual o paciente terá que se confrontar: a relação do analista com a psicanálise. Esta relação se concretizará quando o analista aceitar atender a pessoa que o procura.


O segundo Ato de enunciar a regra fundamental: “Diga tudo que lhe vier à cabeça e principalmente os conteúdos que estiver tentado(a) a omitir”, transmite uma segurança quanto ao fundo estável da técnica psicanalítica, a essência da técnica.


Esta fase também é chamada de “demanda de amor”. Não amor pelo analista, mas uma demanda de amor no sentido de ser uma fala de promessa, uma promessa de abertura, considerada uma expectativa do que o tratamento pode produzir, expectativa do que pode mudar em seus mal-estares.


Terceira fase: O momento da transferência.

 

Trata-se de um dos momentos mais fecundos do tratamento analítico, um momento doloroso que os analistas, em geral, também resistem em experimentar.


Momento em que a demanda de amor sofre uma decepção.
Demanda que descobrirá sua carência, seu caráter inaceitável. Podemos entender como um momento onde parte das identificações simbólico-imaginárias que a pessoa tem sobre si foram vistas: alcançando assim algo não tão reticente, resistente, inconsciente e recalcado de seu ser, chegando no mais passional, violento, agressivo, odioso e ignorante.
Momento caracterizado pela emergência do retorno do recalcado dos significantes ligados às pulsões.


Uma demanda mais pura é revelada. Segundo Freud: “Quanto mais nos aproximamos do núcleo patógeno, mais forte é a resistência.” Demanda essa entendida como mais próxima do Eu, onde camadas e camadas de identificações imaginárias do Eu foram desveladas e no centro, um elemento que seria o gozo que habita o Eu. Momento onde resta esta última camada mais próxima e que ainda sustenta este objeto Eu. Também pode-se dizer: a demanda mais pura, mais representativa da pulsão recalcada. Quando pouco ou nada existe do Eu, então que surgem os elementos passionais do amor, do ódio e da ignorância.


Segundo Nasio, esse momento é tão transcendente que essa apresentação das quatro fases do tratamento só tem valor para situar bem essa sequência transferencial.

Um tema ligado a essa relação com o momento transferencial é a questão das resistências, resistências essas enunciadas por Lacan como sendo as resistências dos analistas em não querer chegar a esse momento passional da sequência transferencial. A resistência do Eu está ligada às camadas imaginárias, aquela que se opõe para não viver a
experiência de abertura do Eu até o objeto de gozo que jaz em seu cerne.

Esse objeto de gozo também chamado de “objeto a” na terminologia lacaniana refere-se à uma falta, ou seja, todas as camadas imaginárias do eu que sustentavam alguma identidade que a pessoa em análise acreditava piamente são subvertidas, denotando uma ausência, em alguns momentos levando o analisando a ter o insight de que até aquele momento ele viveu acreditando em uma identidade que lutou a vida toda para sustentar, mas que na base em si é insustentável, sendo uma falta.


Quarta-fase: esta última é a da interpretação.

Poderíamos dizer que a fase da transferência é a análise em si, significando o Ato da fase de sugestão. A passagem da demanda de amor para a mais pura já significa que o(a) analisando(a) praticou a análise da sugestão e sua transformação na transferência. A transferência é a análise da sugestão e a interpretação é a análise da transferência.

 

A interpretação da transferência se realiza com a condição do analista fazer o silêncio para que surja o grande Outro para o paciente, tomando até forma de uma interpretação. São momentos onde o(a) analisando(a) começa a desconfiar e interpretar seu próprio discurso.


Essas quatro fases podem não ser descobertas ao longo de um tratamento, ao mesmo tempo que eles acontecem de forma concomitante, de forma não linear, logo, não respeitando uma sequência exata.

 

Freud hipnotizador

A história do método catártico ainda reflete na maneira como hoje é concebida a análise. Dentre alguns métodos de sugestão existentes na época, a hipnose era um deles. Um fato curioso é que em 1890 quando Freud praticava a hipnose, ele colocava seus pacientes no divã e ficava atrás deles por não suportar estar em contato direto com eles por muito tempo, dificultando assim a prática da hipnose fazendo com que Freud se achasse um mau hipnotizador. No entanto este método de aplicar a hipnose já era praticada por outras pessoas, Freud apenas retomou uma forma antiga de aplicá-la. 


O método catártico


Tem-se que o método catártico foi inventado por Breuer, outros dizem que foi Janet e outros ainda acham que foi Burot, um médico francês. Congressos em paris no ano de 1881 de psiquiatria e psicologia traziam que o método catártico partia do seguinte princípio: os sintomas do histérico seriam a expressão manifesta da presença de um corpo estranho incrustado na psique do sujeito, como um parasita. Este corpo estranho seria uma idéia ou grupo de idéias penetradas no espírito, fora da consciência do sujeito. Essa idéia teria uma presença ativa patógena. Charcot usava a hipnose para criar sintomas do passado em pacientes histéricos, denominando "neurose de artificial". Entre dez e quinze anos depois Freud chamaria de "neurose de transferência". Breuer teve uma idéia de servir-se da hipnose, sugestão verbal ou outro tipo para extrair esse corpo estranho, esse parasita da psique do paciente, fazendo-o retornar ao momento em que teve lugar a experiência traumática.


Mas a pergunta é: como isso se instalou no sujeito?


Breuer dizia que a pessoa quando mais jovem, havia certos momentos em que ela estivera em um estado hipnóide, uma espécie de obnubilação, de confusão, criando assim as condições necessárias para essas inscrições inconscientes.


Janet dizia que havia uma má síntese por parte do Eu, não sendo o Eu capaz de integrar corretamente esse grupo de ideias. Ele chamava isso de "labilidade psíquica de síntese".


Freud trazia uma terceira hipótese dizendo que esses grupos de idéias eram o resultado da percepção de um acontecimento sexual. Isso distinguia claramente de que pensavam os outros teóricos da época: o caráter violento, e além disso, sexual, do acontecimento traumático.


Se na época Charcot havia postulado essa teoria da histeria ser um grupo de ideias parasitas no inconsciente do sujeito, podemos dizer que o trauma depende da singularidade e do excesso de afeto da percepção do evento traumático, sendo Um o excesso.


Aqui aos Lacanianos: não se pode reconhecer aqui o S1, o objeto a e a cadeia dos significantes S2? O elemento singular como S1 e o excesso de afeto como objeto a?

Isso não seria um reducionismo entre Lacan e Charcot?

Não é a ideia, mas o propósito é mostrar que a teoria analítica continua a alimentar-se dessa estrutura de conjunto que se chama Eu, elemento Um, elemento distinto, distintivo e singular que está na origem da doença.

Se faz importante dizer que em nossa prática, nós nos situamos em um continuum simbólico, em uma filiação, que reconhecemos que aquilo que nós pensamos e praticamos hoje não nasceu ex nihilo, mas fazemos parte de uma história que nasceu antes e continuará depois de nós. 

Voltando um pouco ao tema, o método catártico consistia em produzir no sujeito uma reminiscência do acontecimento traumático, pois essa reminiscência integraria na consciência através da fala, o que estava isolado no inconsciente.

Este método de levar o paciente ao momento original da percepção inconsciente, nos serve para dizer do analista de hoje que este deve proceder de modo inverso. O analista deve perceber inconscientemente o inconsciente do sujeito. No método catártico, a percepção inconsciente seria levada a ser retomada pela percepção consciente. O analista deve abandonar a percepção consciente, mudar de registro e poder perceber, como se devesse voltar ao trauma, à experiência traumática, nesse estado obnubilado o inconsciente em jogo do sujeito.

O método catártico: 1-curava porque integrava; 2-permitia descarga dos afetos;3-curava pois produzia uma neurose nova. O sujeito vivia, no momento da reminiscência catártica, uma crise de histeria. Aqui encontramos o conceito de neurose de transferência, um momento fecundo da análise e da transferência.

Quando se fala em catarse, esta sobreviveu na teoria psicanalítica por volta de 1890 e 1897, depois não se falou mais.

Rank e Ferenczi escreveram um livro O desenvolvimento da psicanálise em 1923 dizendo que "A despeito do nosso saber, devemos dizer que a descarga de afeto no método catártico é o fator primordial da terapêutica analítica."

A coerção associativa e a resistência

Freud abandona a catarse e hipnose entre 1892 e 1893 aderindo à "coerção associativa", tentando estimular e até exigir a rememoração dos acontecimentos esquecidos. Ele descobre que Elisabeth, sua paciente, não queria se lembrar e aí então que ele cunha o conceito de resistência. Esse conceito modifica relativamente a teoria da neurose, apontando para um conflito entre representações traumáticas e a consciência recalcadora. Além disso, Freud se vê obrigado a mudar de tática procurando outras produções psíquicas, assim ele propõe a associação livre concretizando-a como a regra fundamental. Outra consequência é a nível da interpretação, onde Freud faz intervenções junto ao paciente para ajudá-lo a interpretar a resistência, diminuindo a resistência do Eu. É a partir daí que surgirá a noção de "resistência à transferência". Correlativamente, a descoberta da relação transferencial, o desvelamento da transferência e o reconhecimento do aparecimento de novos sintomas ligados ao terapeuta, surgindo assim a "neurose de transferência", isto é, o reconhecimento de que o analista estará no lugar de objeto fantasístico subjacente aos novos
sintomas que aparecerão na relação.

II - O caráter de analisabilidade

Nasio introduz este capítulo de seu seminário destacando que o melhor que um analista pode fazer em um ensinamento não é veicular um saber, informar este ou aquele conceito, mas ensinar a encontrar a verdade, fazer apontamentos para que favoreça e facilite o analista saborear a experiência da verdade.


Nem todo paciente que nos consulta é analisável

 

Nem todas as pessoas são analisáveis. Segundo a prática e a teoria, há apenas um critério de analisabilidade: quem é capaz de transferência. Ou seja, quem é capaz de desenvolver com o analista uma neurose dita “de transferência”.

Neuroses de transferência e neuroses narcísicas

 

Este critério foi claramente estabelecido por Freud desde o início, levando a distinguir: neuroses passíveis de análise que comportam a transferência - histeria, fobia e obsessão - e as não passíveis de análise, refratárias ao tratamento analítico, tais como a melancolia, a paranóia e a esquizofrenia. Essas foram chamadas por Freud de neuroses narcísicas, hoje de psicoses.


Esse critério e distinção entre neuroses de transferência e neurose narcísica foi objeto de debate por em média 80 anos da história analítica. Alguns autores norte-americanos e ingleses se dedicaram a demonstrar que, ao contrário da premissa de Freud, a psicose era sim passível de análise. Os autores são: Rosenfeld, Searles, Frieda von Reichmann, Bion e Hanna Segal.

Realidade psíquica local

Nasio adota o termo “foraclusão local” para designar realidades psíquicas locais na estrutura do paciente psicótico, ou seja, dessas realidades locais, pode haver uma realidade psíquica local transferencial e outra que recusa a transferência. Logo, um paciente com essa estrutura pode experimentar momentos dos quais entra em relação transferencial com o analista. No entanto devemos reconhecer que Freud nunca foi categórico sobre não analisar os psicóticos, mas alertava: “estejam atentos!”, “sejam prudentes!”. Lacan traz um texto sobre as preliminares para um “tratamento possível das psicoses”.


Esta prudência se aplica, por exemplo, nas primeiras entrevistas com um paciente esquizofrênico, do qual não teremos a mesma disposição para trabalhar com ele na análise do que se fosse um paciente neurótico. O mesmo vale para pacientes com passagens ao ato perversas, toxicômano ou melancólico, principalmente na fase aguda.


O bom senso

Certa vez Lacan contou em um seminário que chegava de um júri, do qual tiveram que escolher, selecionar, os analistas da Escola Freudiana, designados por Analistas Membros da Escola, onde no júri perguntaram à ele quais eram os critérios para a escolha e seleção. Na época e na ocasião específica havia o “passe” do qual o júri selecionava, por outro lado os analistas membros da escola eram escolhidos em função do seu mérito, a maneira que trabalhavam em supervisão, tempo de sua análise, sua prática, etc. Lacan naquele dia respondeu: “Não há outro critério a não ser o bom senso. Não há nada além do bom senso”.


Brincando com as palavras, Nasio coloca que há uma ética do bom senso como uma ética do bem dizer, como dizia Lacan. A ética do bem dizer se trata da ética do dizer do recalcado, um dito que signifique alguma coisa de recalcado, o silêncio de um recalcamento. Já a ética analítica do bom senso é quando o analista implica um sentido, o único sentido válido em psicanálise, sendo um tanto brutal: a ética do sentido fálico.


Voltando à questão da transferência, ainda se faz válida teoricamente essa distinção entre neurose de transferência e neurose narcísica, trazendo instruções quanto às primeiras entrevistas com pacientes. Falando da “capacidade de transferência”: O que é ser apto para a transferência+ O que é a analisabilidade+ Por que as neuroses de transferência sao analisáveis e as narcísicas não o são+ 

 

As neuroses de transferência

Na maioria das vezes, a neurose de transferência e suas manifestações acontecem de forma muito rápida desde as primeiras entrevistas. É importante detectar suas manifestações para melhor manejo clínico, como por exemplo o momento de sugerir o divã ao analisando.


O que é a neurose de transferência? Falar "neurose de transferência" é propor um conceito técnico ao mesmo tempo que pode ser vista como uma entidade nosográfica definida em função da terapia analítica.


Há quatro textos que Freud fala de neurose de transferência como conceito técnico:
1 - 1914 - Repetir, recordar e elaborar
2 - 1016 - Conferência introdutória XXVII
3 - 1920 - Mais-além do princípio de prazer
4 - Neuroses de transferência: uma síntese, neste Freud traz o conceito nosográfico do termo.


Outro texto apontado por Nasio onde encontramos sobre a NT é em Introdução ao narcisismo, onde Freud se preocupa em definir o que elas são.


Nasio faz um esclarecimento, dizendo que muitos textos analíticos tratam neurose de transferência como uma classe particular de transferência, especialmente os anglo-saxônicos. Há uma preocupação nestes textos em demonstrar que as psicoses são aptas para a transferência, distinguindo entre "psicoses de transferência" e "neuroses de transferência", dizendo que estas classificações estão dentro da "transferência". Outros autores até sugeriram "perversões de transferência".

 

Nasio não concorda com este posicionamento, enfatizando o interesse em identificar o conceito mais geral de transferência e neurose de transferência na escuta dos analisandos. 


Quando um analista enuncia mil vezes a palavra banalizada transferência, geralmente ela está baseada em três acepções clássicas que o afastam da experiência do setting, impedindo de interrogar, consultar e apreender.


As três acepções são:
Primeira: a transferência é a relação com o analista
Segunda, mais vaga, geral e espontânea: a transferência é o conjunto dos afetos e das palavras alusivas, vividas ou não, em relação ao analista
Terceira, vaga: a transferência é a repetição, no atual, com o analista, das experiências sexuais infantis vividas no passado


Não que esses sentidos não tenham lá sua verdade, mas uma aproximação e identificação da transferência em geral ajuda a desambiguar de neurose de transferência.


Nasio aponta que nos textos de Freud citados, Freud não diz que a relação do terapeuta se faz em uma neurose, pois essa ideia de transferência não era inteiramente freudiana, vinha primeiramente de Charcot e foi retomada por Janet.

 

A neurose de transferência: uma neoformação psíquica 

Diferentes definições de neurose transferencial:

 

A NT é um produto psíquico, mórbido, espontâneo e fundamentalmente inconsciente, que faz o sujeito a viver sem perceber.


Esse "estado de transferência" é uma criação nova em relação aos sintomas pelos quais o analisando deu início ao tratamento analítico, sendo uma neoformação, Freud usa o termo "tecido vivo". Note que há uma distância em dizer que a transferência é a relação com o analista, os afetos e as palavras vividas em relação a ele.


Freud aponta que esse tecido vivo se cria na fase de abertura do tratamento, crescendo e se multiplicando insidiosamente. Como uma lava vulcânica invadindo o vínculo analítico de forma sub-reptícia - feito às escondidas, clandestina e sorrateiramente-.


Essa lava, esse tecido vivo, se concentra e converge para um único ponto umbilical em direção ao analista.


Primeira característica: produto psíquico mórbido e inconsciente

Segunda característica: é uma criação nova em crescimento e extensão viva
Terceira característica: Freud diz que "essa estrutura mental é uma estrutura artificial", artificial no sentido de manejável e manobrável por um operador que ocupa o centro dessa estrutura, ou seja, a figura do(a) analista.


Por artifical não entende-se somente por "provocada, desmontável, provisória e interpretável", mas pode-se dizer que ela responde a três objetivos, à vontade do terapeuta. Essas expectativas do operador são: expectativa terapêutica, expectativa de pesquisa e expectativa ética.


A expectativa terapêutica

 

Essa expectativa terapêutica consiste no mesmo princípio que o do método catártico da época de Freud: reproduzir a doença para poder eliminá-la, para melhor tratá-la e para melhor elaborá-la. Freud reconhecia o risco do tratamento pois pode aumentar a doença a níveis tão intensos que pode dificultar a continuidade do tratamento, por vezes acarretando na origem de graves passagens ao ato.

Primeiro objetivo: terapêutico


A expectativa de pesquisa

"Os processos inconscientes só podem ser conhecidos por nós nas condições das neuroses, isto é, em circunstâncias em que todos os processos pré-conscientes foram rebaixados".


Trata-se de uma expectativa de investigação, de pesquisa para o conhecimento do inconsciente.


A expectativa ética


A esse respeito, Freud diz: "O que o paciente viveu sob a forma de uma transferência, jamais esquecerá." A posição de Lacan considera que não havia uma psicanálise didática e outra psicanálise pessoal, apenas psicanálise pura. Em última instância, sempre criaria um analista a partir de um analisando.


É um objetivo ético de psicanálise pura, próximo daquilo que hoje chamamos de sublimação. O que se experimenta na transferência em forma de gozo se transforma em ato, num vestígio significante: a abertura de uma nova análise.


Essa seria a expectativa ética.


Dois níveis de compreensão da transferência: nível matricial e nível da significação

 

Quanto ao nível matricial, referente à matriz, é uma espécie de fórmula essencial. Já ao nível de significação, de sentido, nos serviremos de muitos termos da teoria lacaniana.


A transferência é uma pulsão

 

Freud pensava que a NT era uma atualização no presente, com o analista, de antigos desejos eróticos. Nasio prefere dizer que é um dos destinos possíveis da pulsão, um destino analítico: quando nos interrogamos sobre a analisabilidade de um paciente por ocasião de uma primeira entrevista, deveríamos escutá-lo pensando que sua capacidade de transferência se decide pela potência da sua pulsão, ou seja, para deixar a sua fonte, ir em direção ao analista como objeto, girar em torno dele e voltar enfim para o seu ponto de partida.


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Um aplicável termo geral de transferência pode ser entendido como uma atividade pulsional, um traçado pulsional que sulca uma terra deserta, uma terra que se tornará progressivamente um lugar, um vínculo: o vínculo da análise.


O Gozo fálico


Freud diz que a transferência é a repetição, no presente, das experiências pulsionais vividas no passado, mas Nasio não toma "repetição" como algo que liga o antigo ao atual, uma pulsão reativada, mas que toda pulsão é sempre nova, sendo mais aplicável como uma força, uma potência, algo que insiste, que empurra, que mantém, que persiste como uma força que obriga no atual a criar um laço entre duas pessoas: o analista e o analisando.


Sobre o duplo sentido da palavra repetição: a ideia habitual de alguma coisa antiga que repete no presente, e outra mais audaciosa que diz que é aquilo que leva a que a coisa persevere e que a pulsão seja poderosa. Em Freud temos "compulsão de repetição", em Lacan "Gozo fálico". Gozo fálico como a potência de perseverança, de persistência da pulsão: é o que faz com que um traçado se realize, é o que sustenta esse mesmo traçado. É o que Freud, na Metapsicologia chama de "o impulso".

Compulsão de repetição, impulso ou Gozo fálico é incontrolável e habita todos os seres falantes, presente em qualquer vínculo humano: com o cônjuge, com a filha, com o patrão, etc…

Critério de analisabilidade: a capacidade de ser afetado pela
pulsão

Em que consiste a capacidade e aptidão de transferência do candidato à análise?


Segundo Spinoza: a aptidão à transferência analítica é o poder de ser afetado em ato pela pulsão, ou seja, quando o candidato é de fato capaz de se deixar levar por suas pulsões, pois nem todos são afetados da mesma maneira, nem todos sofrem com suas pulsões, há seres que "se viram" à sua maneira.


Aqui valemos de uma citação de Freud: "A terapia analítica tem seus limites. Só pode curar o neurótico na medida em que ele sofre" [...] "Quando ele não sofre, a terapia fica sem efeito."


Freud distingue as neuroses de transferência passíveis de análise das neuroses narcísicas não passíveis de análise.
Esses "seres que não sofrem" podemos constatar como aqueles analisandos que param o tratamento depois de alguns meses de análise.


A explicação da neurose de transferência no nível das significações pode, por sua vez, trazer esclarecimentos. É como se o analisando não se implicasse, não se entregasse realmente a sofrer pelas suas pulsões no sentido de tirar a limpo o que a significação de seu sofrimento teria a lhe revelar.


Em que consiste a capacidade e aptidão de transferência?

A primeira resposta é o poder de ser afetado em ato pela pulsão, sofrer pela pulsão, mas restam outras respostas em torno da aptidão à transferência.

O nível matricial da neurose de transferência sendo um destino analítico da pulsão está mais relacionada à figura do analista, já o nível da significação ajudará a abrir caminhos para outras respostas quanto a capacidade de transferência.


Nível da significação da transferência


Freud diz que muitas vezes, ocorre um fenômeno onde os sintomas pelos quais o paciente procurou o analista desaparecem no início da primeira frase do tratamento. Se certos sintomas persistem, veicularão uma nova significação que ele chama de "significação transferencial". Nesse momento estarão presentes os sintomas que serão significantes pela transferência, que vão levar a significação da transferência. Freud acrescenta que novos sintomas específicos à relação analítica também aparecerão.


Essa significação transferencial dos novos sintomas ou dos antigos que continuam é uma significação fálica. O que isso quer dizer? Quer dizer que esse sintomas serão conotados com um sentido transferencial e sexual - no sentido ampliado do termo sexual, não se referindo propriamente ao coito. Ao invés de dizer "transferencial e sexual", mais precisamente como Lacan: uma significação fálica.

 

A diferença entre as neuroses de transferências e neuroses narcísicas atuam não só no nível matricial, mas também no da significação. Nas neuroses narcísicas, isto é, melancolia, paranóia e esquizofrenia, não há significação fálica, Nas neuroses de transferência, como a histeria, a fobia e a obsessão, os sintomas são conotados com um sentido de significação fálica - transferencial e sexual.


A significação transferencial

Podemos começar a compreender que a significação transferencial de um sintoma, antigo ou novo, é aproximadamente como a de uma mensagem destinada ao terapeuta, instituído agora como interlocutor. Quando Freud diz que na neurose de transferência os sintomas levam uma significação transferencial, significa que os sintomas se dirigem ao analista, porém com uma condição bem precisa.

Diferença entre psicoterapia e psicanálise

Um ponto importante é o fato de que haja uma condição bem precisa para que novos sintomas apareçam e os antigos levem uma significação transferencial. É uma condição que não só permitirá o surgimento das significações transferenciais, mas que vai distinguir a terapia analítica dos outros métodos psicoterapêuticos.


Qual é essa condição? É que o analista encarne por suas atitudes, comportamento, tom da voz, modo de dar a mão, um abraço, ou seja, por todas suas manifestações o mais fielmente possível a expressão imaginária do objeto insatisfatório da pulsão. Que ele tente ao máximo encarnar a figura imaginária do paradigma de todo objeto, isto é, o falo imaginário.


Logo, a condição para que os sintomas do analisando sejam uma mensagem destinada ao analista, é que este não se situe na posição de destinatário desta mensagem, não leve para o pessoal, mas sim na posição de objeto insatisfatório. Citando exemplos: o cuidado a se tomar para não concordar com o analisando; não atender às suas demandas de amor, como uma busca por reconhecimento, pretensão de validação, pedido de atenção, tentativa de aprovação, desejo de agradar, etc.


Sabemos que a pulsão permanece, por natureza, insatisfeita. Não existe objeto que satisfaça a pulsão. É preciso que o analista se aproxime dessa expressão imaginária, o véu imaginário desse objeto, se constituindo como um grande Outro interlocutor das mensagens que o analisando lhe dirige. É na medida que o analista encarna esse lugar que a condição da neurose de transferência matricial e de significação serão estabelecidas.


O desejo do analista


Lacan chama de "o x desconhecido do analista" quando ele se refere ao "desejo do analista".


Mas o que vem a ser o desejo do analista? Segundo Nasio: É o lugar do objeto recoberto pelo véu de um falo imaginário, opaco e enigmático.


A expressão "desejo do analista" não se refere aos desejos da pessoa, da personalidade, do CPF ali na profissão psicanálise; tampouco é o desejo de uma pessoa tornar-se analista; desejo do analista é uma expressão estrutural; o lugar do objeto recoberto pelo véu de um enigma que o analisando aspira em desvelar. É nessa condição que o analista poderá ocupar esse lugar com todo seu comportamento. Ocupando este lugar, ele institui sem querer querendo o Outro no analisando, o referente, o interlocutor dos novos sintomas e trazer a significação transferencial.


Vestindo-se do objeto com o mistério de seu silêncio e da sua recusa, o analista faz o analisando sentir e lembrar que o objeto é sempre insatisfação, instaurando assim o Outro referente, a autoridade do Sujeito Suposto Saber. Essa autoridade existe em qualquer terapia, pois o psicoterapeuta é uma autoridade para seu paciente, porém é somente na psicanálise que essa autoridade, dimensão do Outro, interlocutor dos sintomas portadores da significação transferencial nasce graças ao comportamento técnico de um operador que ocupa esse lugar de objeto de insatisfação.


Um outro efeito importante desta operação é que se o analista ocupa esse lugar de enigma, exerce sobre o analisando uma certa sedução, suscitando neste o aparecimento de novos sintomas que trazem a marca da transferência.


Demandas de amor

Esta função do analista provoca demandas de amor por parte do analisando, gerando necessidade de esclarecer estas demandas, incluindo demandas de saber, de reconhecimento, até um cessar de associações do analisando, como se colocasse uma vírgula em associações onde antes não havia. Isso constitui uma demanda no nível da significação, onde tira o analisando de suas frases prontas, de seus conceitos sem reflexão, gerando um novo prisma para suas atribuições, explicações e opiniões. "Nunca tinha pensado isso!" costuma ser uma fala que evidencia essa operação.

 

Vale lembrar que nem todo o material de um analisando é transferencial, como nem tudo que ele diz é demanda de amor, mas certas demandas de reconhecimento e saber o são.


Por que essas demandas se chamam "demandas de amor"? Porque exigem do analista em posição do Outro, que ele forneça ao analisando o que o analista possui, que ele lhe dê ao analisando o que este atribui e supõe o analista possuir.


O primeiro tempo da demanda de amor é onde o analisando quer que o Outro lhe dê. Se o analista não ocupa esse lugar imaginário que recobre o objeto enigmático, logo a transferência se converte em pulsão, não havendo Outro referente, não havendo demandas, palavras, manifestações e sintomas transferenciais. Então o que haverá? Apenas atuações, passagens ao ato, um tipo de desnudamento do objeto.

 

A transferência faz surgir a pulsão, o desejo do analista faz falar

Lacan diz: "Se a transferência é o que da pulsão afasta a demanda, o desejo do analista é o que a reconduz a ela."


Uma pessoa X está em sofrimento onde diversos sintomas a acometem. Essa pessoa se angustia por não saber a origem desses sintomas (demanda). Por sorte ou por azar, essa pessoa de alguma forma tem contato com a Psicanálise, que a faz procurar (pulsão) um(a) Psicanalista. Neste momento uma transferência já existe, pois esta pessoa (provavelmente de estrutura neurótica) de alguma forma supõe que essa Psicanalista poderá ajudá-la, auxiliá-la e orientá-la a fim de obter respostas saindo assim de seu sofrimento e sintomas angustiantes dos quais não tem noção da origem.


- Estou atrás de algo que não sei o que é, você pode me ajudar?
- Claro! Fale sobre.

 

É por isso que a origem da fala, a condição para que o analisando fale e se engane, para que haja novos sintomas, que haja demandas de amor, é que o analista venha a ocupar esse lugar de falo imaginário que cobre o objeto da pulsão.

 

Segundo Nasio: se a transferência é o que da pulsão afasta a demanda, o desejo do analista - posição de função - é o que provoca, reconduz, atrai, suscita e orienta essa demanda.


Orienta para onde? Para o Outro. A posição do analista diante do falo imaginário faz com que o analisando espere receber dele esse objeto.


A condição de que a figura do(a) analista venha encarnar o véu imaginário que cobre o objeto da pulsão tem três efeitos:


Primeiro: instituição de um outro simbólico; Sujeito Suposto Saber; interlocutor privilegiado.


Segundo efeito: suscitar no analisando o fato de formular demandas de amor, produzir novos sintomas, enganar-se ao falar, de sonhar, de pedir por reconhecimentos, etc.


Terceiro efeito: essas demandas são dirigidas ao Outro, para que lhe seja entregue o objeto que ele supostamente possui, ou seja, o falo do Outro.


De onde provém a autoridade que o analista tem sobre o analisando? Segundo Nasio, a partir do momento em que um suposto analisando entra em contato com um analista para marcar uma consulta, a transferência em direção ao analista já está instaurada. Freud, Lacan e Nasio: a transferência está presente antes do primeiro contato.

 

* Água bate na bunda

 

Essa transferência em direção ao analista basta? Já observamos em outro encontro que o primeiro objeto transferencial do analisando é a relação do analista com a análise e, quando o possível futuro analisando chega para se consultar, já traz uma transferência prévia, mesmo quando não há demanda de análise. A pessoa que chega não sabe muito bem quem estará ali, mas sabe que alguém estará ali para ouvi-la.

 

Não basta que essa transferência prévia esteja presente, é preciso atuar para que haja instituição de autoridade do analista sobre seu analisando, para isso o analista precisa fazer-se silencioso, enigmático, que fale pouco, pois quanto mais ele falar, mais se afasta do "menos phi" - a falta fundamental, a falta no Outro, a falta no próprio sujeito.


A escuta capta o inconsciente do outro em seu próprio silêncio. A escuta capta o outro em seu próprio silêncio.


Elementos de apreciação para passar ao divã

1º - Disposição do analista:
Este deve fazer várias entrevistas iniciais, sem se preocupar com o divã.


2º - Diferentes manifestações objetivas devem aparecer no relato do analisando:
- ligadas a fatos íntimos de caráter sexual
- ligadas a acontecimentos bem precisos de sua infância
- ligadas à relação com o analista,
- ligadas às dores do corpo,
- sonhos,
- lapsos.


Esses sinais são dirigidos ao analista, ao mesmo tempo que o analista tem a sensação que sua presença visual perturba e incomoda o analisando.


3º - O analisando deve passar ao divã quando o analista tem a impressão de que sua presença perturba, incomoda e causa resistência ao relato do paciente.


Respostas às perguntas

Vamos abrir agora um diálogo sobre a distinção entre psicoterapia e psicanálise.


P: O sr. abordou um ponto entre uma posição na psicanálise e a maneira pela qual, no seio de uma psicoterapia, utilizam-se as referências da análise. Seria esse o único modo de distinção sobre essa distância?


R: Psiquiatras ou psicoterapeutas não estão preocupados em instaurar com seus pacientes uma neurose de transferência. A primeira coisa que se apresenta como distinção essencial é que nós, analistas, pensamos que é preciso intensificar a doença, psicoterapeuta e psiquiatra não concordariam com isso.
Há uma tendência em dizer que o analista interpreta a transferência. É exato, mas extremamente pobre. Acreditar que estamos ali para escutar e interpretar é muito raso. O analista está ali para participar de uma neoformação, a criação mórbida de um tecido vivo.


P: Então, que diferença há entre psicoterapia e psicanálise?

 

R: Primeiramente, um psicoterapeuta dificilmente se arriscaria a fazer parte de um novo estado mórbido. Além disso, a postura que costumeiramente ele adota é como se ele já se situasse na posição de objeto a, enquanto o analista se reserva, primeiro em posição de véu, se reduz, se faz pequeno. No início de sessão ele não diz "Fale comigo!", mas sim: "Estou ouvindo, estou escutando."


Vale comentar que o véu do objeto não é apenas o silêncio, embora seja a maneira mais certa e simples que esse véu adota, mas há outras maneiras que o analista só adquire com a experiência, como por exemplo: o tom da voz, o modo de dizer uma interpretação, e como o modo de fazer uma intervenção explicativa e ampla nos afasta desse lugar.


Lembrando que essa experiência é ainda de modo particular que cada analista tem com seu analisando, pois cada analisando tem sua forma peculiar de tratativa e de manejo.


P: Quais diferenças o sr. vê entre as intervenções de um jovem analista e as de um experiente?


R: Poderíamos apresentar assim a evolução:


1-Ele interroga
2-Reformula com outras palavras
3-Amplia o sentido do que foi dito
4-Coteja o que acaba de ser dito com ditos precedentes
5-Repete uma palavra, enfatiza
6-Dá um tema de reflexão para a sessão seguinte
7-Detecta as alusões à situação analítica
8-Completa uma frase do paciente deixada em suspenso
9-Não interpreta, ou interpreta muito pouco
10-Não precede o paciente, não antecipa o que ele vai dizer
11-Não sabe o que procura

 

Esse último caracteriza mais um estado de espírito do que uma intervenção.


P: Em que momento se pode propor o divã ao analisando?


R:

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