Cartel Neuroses
A dinâmica de um cartel sobre neurose pode variar, mas geralmente envolve: apresentação de casos clínicos, discussão de textos teóricos, debates sobre conceitos. Os membros discutem conceitos-chave como inconsciente, desejo, angústia, pulsão de vida e pulsão de morte, buscando uma compreensão mais integrada no campo neurótico.
Outros temas estudados pelo grupo são: a diferença entre neurose, psicose e perversão, as defesas características de cada tipo de neurose, a importância da transferência no tratamento da neurose, as contribuições de Lacan para a compreensão da neurose e a relação possível entre o podecimento neurótico e a cultura.
Texto estudado: Real, simbólico e imaginário no ensino de Jacques Lacan
Michele Roman Faria
Patrícia Mezzomo
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Preocupado com uma psicanálise desviante de sua origem do inconsciente, Lacan contará, ao longo de toda sua obra, com seus três registros, na intenção de esclarecer tais desvios.
Sem jamais considerá-los isolada ou evolutivamente, e descartando qualquer hierarquia entre eles, simbólico, imaginário e real darão suporte a uma investigação teórica e clínica na qual cada um dos três estará sempre referido e articulado aos outros dois.
O desafio constante sempre era o de encontrar uma forma de abordá-los, os três, ao mesmo tempo. Desafio esse que só será ultrapassado, 20 anos depois com seu nó borromeano que mostra efetivamente que é do enodamento que se trata para poder demonstrar a equivalência entre real, simbólico e imaginário.
De 1953 a 1980 é a teoria que nos situa o ponto de convergência de todo o percurso lacaniano.
Se retroagirmos nesse percurso, veremos que em seus primeiros escritos e seminários estão concentradas as mais importantes reflexões sobre o imaginário, demonstrando o papel essencial deste na formação do eu.
Lacan trava uma verdadeira batalha contra uma psicanálise pautada no eu, e é no registro do imaginário que encontramos o ponto de apoio para sua contundente crítica dos desvios da psicanálise para esse modelo adaptativo.
É também no papel do eu e do imaginário como construção da realidade, que Lacan elabora importantes contribuições para o tema e tratamento das psicoses.
Esse período inicial do ensino de Lacan será marcado, portanto, de um lado, pela crítica ao manejo imaginário e alienante das análises que tomam o eu como fundamento; e, de outro, pelo destaque dado à função organizadora do eu e do imaginário enquanto perspectiva fundamental para situar o tratamento possível das psicoses pela psicanálise.
Aqui cabe um ponto. É no imaginário que encontramos a ilusão de compreensão e entendimento acerca do outro. E é justamente essa ilusão de compreensão, fonte dos desvios e equívocos na transmissão dos conceitos psicanalíticos. Equívocos que Lacan não cessará de advertir aos psicanalistas, ao longo de todo seu ensino.
A passagem do imaginário para o simbólico, que encontra-se no centro das preocupações de Lacan, a partir do quarto seminário até ao menos o oitavo poderia ser entendida da seguinte maneira → não é do eu que se trata, mas sim da linguagem. A psicanálise é um tratamento cuja via é a linguagem.
É no simbólico que Lacan se aproxima do estruturalismo e da linguística dando apoio a definição de desejo inconsciente e também é no simbólico que ele encontra as bases para escrever a teoria do complexo de Édipo como interdição em uma fórmula → a metáfora paterna, que tem função de nomeação do enigma do desejo materno. O nome do pai que representa o desejo da mãe produz efeito metafórico.
O simbólico terá prioridade em seu ensino até por volta do seminário oito, quando, pouco a pouco, conceitos como a angústia, fantasma, gozo e pulsão começam a exigir maior atenção, e vão se tornando cada vez mais evidentes os limites da linguística estruturalista para abordá-los, trazendo a necessidade de incluir o lugar do real como impossível, inapreensível pela linguagem.
É a matemática, em especial a lógica e a topologia, que passa então ao papel central como suporte teórico a partir do seminário nove, mostrando que o que escapa à linguagem não deve ser reduzido a um resto que apenas fica de fora, mas que tem função de causa da própria estrutura que a linguagem empresta do inconsciente.
É então que surge o objeto a para definir esse resto, que será o conceito utilizado por Lacan para lembrar que a estrutura de linguagem do inconsciente inclui o real como causa. Ela será tão importante que, no seminário ...ou pior, Lacan afirmará que “não há ensino, a não ser matemático”, assim como afirmar que o real é o inabordável a não ser pela via da matemática.
É a partir do seminário nove que Lacan utilizará da lógica, da topologia e de recursos matemáticos para abordar o real, para evitar os efeitos imaginários da transmissão da psicanálise e também para destacar o lugar do real e do objeto a na constituição do sujeito.
Trabalhará com cortes nas figuras topológicas, para mostrar os efeitos visados pela intervenção analítica, definindo o próprio sujeito do inconsciente como superfície topológica, para situar a operação do psicanalista como “agindo nela”
Resumo - Estruturas e Clínica Psicanalítica - Joël Dor
Pedro Paschuetto
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Quarta parte - A estrutura obsessiva
XV - A problemática obsessiva
Costumeiramente na tradição psicanalítica acontece de apresentar a estrutura obsessiva como oposta à estrutura histérica, porém se faz de uma oposição relativa e inadequada, apoiando em algumas observações de fenômenos e não em traços estruturais.
Ao contrário do histérico, o obsessivo sente-se amado demais pela mãe. Fato quase que incontestável na questão obsessiva, não constitui elemento que permite opor ao histérico, pois isto também poderia ser observado em organizações perversas.
Uma evidência do sujeito que se sentiu amado em demasia pela mãe é apontar algo específico do ponto de vista da função fálica, ou seja, se manifestando frequentemente como um sujeito particularmente investido como objeto privilegiado do desejo materno (investimento fálico).
Segundo Joël Dor: Os obsessivos são os nostálgicos do ser. Lembrança do obsessivo apoiada em um modo particular que teve com sua mãe, ou melhor, que sua mãe manteve com ele. Pela criança ter sido investida precocemente como "privilegiada" nesta lógica fálica, desperta nela esta nostalgia de se constituir como um objeto de satisfação do qual a mãe não encontrou no pai, formando a frase: a nostalgia do que a mãe poderia encontrar nela o que supostamente espera do pai.
Sobre a passagem do ser ao ter: um ponto decisivo da aposta fálica na dialética edipiana, o pai "faz lei" do ponto de vista da criança perante à mãe, ou melhor, à falta que a criança interpreta do desejo dela. Se o pai "faz lei" é sob a condição de que a mãe está suposta a desejar o que não tem e que o pai possui. Ampliando este conceito, aqui a criança pode interpretar o desejo da mãe não é necessariamente pelo que o pai tem, pois lembrando que a base está na fantasia fálica, mas para onde ela desvia seu investimento fálico: sua beleza, sua carreira profissional, seus estudos, etc. Primeiro algo foi significado à criança no discurso materno: de que a criança é o objeto de desejo; seguindo pelo processo da criança interpretar que a mãe é faltante, então ela se torna dependente da pessoa do pai, melhor, de outra coisa que deseja que não a criança. Somente a significação dessa dependência pode mobilizar a criança na dimensão do ter.
Posto o discurso materno e a localização do objeto de seu desejo, inaugurará na criança um dispositivo de suplência à satisfação deste desejo, um ponto crucial na determinação da estrutura obsessiva. Não se trata de uma suplência ao objeto do desejo da mãe, mas de suplência à satisfação do desejo dela, o que faz supor que essa satisfação foi inscrita
à criança como falha e isto, de forma inconsciente, faz a criança achar que pode ser o preenchimento desta lacuna.
A criança então fica confrontada com a lei do pai e ao mesmo tempo subjugada pela mensagem de insatisfação materna. A mãe não aparece como radicalmente insatisfeita, mas com uma falta parcial da qual buscará complemento possível junto à criança. Neste sentido que o obsessivo é objeto de um investimento particular que lhe dá convicção de ter sido a criança preferida, privilegiada, porém privilégio que não passa de uma suplência à satisfação falha do desejo materno.
XVI - Os traços da estrutura obsessiva
Partindo da premissa de que a mãe tendo uma estrutura psicopatológica de neurose histérica - faltante, desejosa do desejo do outro -, vale-se de seu bebê como falo imaginário, embotada da fantasia fálica e/ou "na eterna busca daquilo que a preenche", qualquer necessidade do bebê será atendida por essa progenitora, seja de ordem biológica ou afetiva.
Posto que o crescimento do bebê levará ao estágio da dinâmica edipiana, nas palavras de Joël Dor:
[...]na dialética do ser e do ter, ou seja, esse momento que leva o sujeito, de uma posição em que está identificado com o falo da mãe, a uma outra posição onde, renunciando a esta identificação, aceitando, então, a castração simbólica, ele tende a se identificar, seja com o sujeito suposto não tê-lo, seja, pelo contrário, com aquele suposto tê-lo. Como podem imaginar, esta operação se dá no decorrer deste processo de simbolização, designado por Lacan: metáfora Nome-do-pai.
Na estruturação da linguagem na criança, essa metáfora paterna será considerada uma função simbólica na resolução do Complexo de Édipo, pois a criança buscará aplacar suas necessidades e desejos na mãe. A mãe não tendo limites neste atendimento das satisfações, será necessário intervir a metáfora paterna para mostrar à mãe e à criança que um não é tudo para a outra e uma não é tudo para um. Trata-se aí de uma vivência identificatória primordial onde a criança é radicalmente identificada com o objeto único do desejo da mãe, objeto do desejo do Outro, o seu falo.
Essa instância mediadora do desejo como metáfora paterna, nome-do-pai ou pai simbólico, é o que levará a criança a interpretar que a mãe deseja outras coisas que não somente ela.
De forma sucinta e resumida, a criança do gênero feminino sentirá uma profunda mágoa ao não se ver portadora do pênis assim como a mãe, logo, renunciando esta identificação com o falo da mãe, se identificará com ela fisicamente e será então o sujeito suposto não-ter-o-falo, o que compreende-se como Neurose Histérica.
A criança do gênero masculino se verá com o apêndice corporal, o pênis, logo será então o sujeito suposto tê-lo, por isso acredita que até certo ponto é o que a mãe busca. A atuação do pai simbólico nesta criança inaugura um significante pelo qual a criança inconscientemente tenderá a realizar, a buscar ser, movida no afã do desejo de preencher esta falta da mãe, ou seja, o que ela busca ao mesmo tempo de não perder esse posto privilegiado de falo materno.
É neste ponto que a Neurose Obsessiva pode ser compreendida, como um inconsciente medo de perder o que fantasiosamente se acha ser e se acha ter - o demasiado amor materno-; perder o lugar de privilegiado, perder a ideia de que se tem algo que o outro não tem; se identificar apenas com o melhor e que apenas este melhor é importante,
o resto é resto.
*Filho único, tem sobrepeso, visita frequentemente a mãe, faz favores, mensagens.
Joël Dor: Obsessivos são os nostálgicos do ser, nostalgia que tem principal apoio em um modo particular de relação que o obsessivo manteve com sua mãe. Seria, sem dúvida, mais exato dizer: que sua mãe manteve com ele.
Pelo excessivo investimento libidinal por parte da mãe através dos constantes cuidados com o corpo da criança (cuidado, carinho, toque), a criança se torna um objeto de uma sedução erótica passiva por parte dela, sendo difícil para a criança gozar de outras formas sem se sentir parte integrante de um gozo privilegiado da mãe, daí se é possível pensar no pavor de homens com essa estrutura terem tanto medo de perder sua companheira; pavor de ser traído; ciúmes excessivos;
Em razão da fixação erótica pela mãe, o obsessivo é continuamente tomado, de maneira aguda, pelo temor da castração, obviamente à castração simbólica, cujas manifestações se darão em torno da problemática da perda e da relação com a lei do pai.
XVII - O obsessivo, a perda e a lei do pai
“O obsessivo não pode perder”. É com esta afirmação que Joël Dor inicia este capítulo, sendo uma “negociação psíquica intolerável” que ressoa cotidianamente na estrutura obsessiva. Qualquer alusão à perda é um martírio, tanto para com sua imagem narcísica quanto ao mundo objetal - aí onde fica muito tênue onde começa um e termina outro. Se referindo à imagem narcísica, é qualquer abalo que o faça questionar suas imagens identificatórias: se a pessoa acredita ser um ótimo cirurgião, qualquer erro apontado num procedimento abalará este lugar; se a pessoa acredita ser um exímio montador de móveis, um parafuso que faltou abalará este lugar; se a pessoa acredita controlar outra através do dinheiro ou outro artifício, qualquer risco neste controle abalará este lugar; se a pessoa acredita ser tudo na vida de outra, qualquer menção de mudança nesta relação abalará este lugar.
O conceito de lei-do-pai é desenvolvido para intervir nos desejos incestuosos da criança para com o progenitor do sexo oposto, atraindo assim a rivalidade e a competição tão prezadas pelos obsessivos, sendo movidos inconscientemente por uma necessidade de “matar” o pai para ocupar seu lugar junto à mãe, o lugar de falo e objeto desejado. Nas palavras de Dor: “ter o lugar do outro investido inconscientemente como um representante potencial da referência simbólica paterna”. Isso desemboca nas lutas, competições e desafios lançados para ver “quem tem o pinto maior”, quem é o possuidor legítimo do falo e quem possui de fato o amor dela.
Por mais que o obsessivo desafie o lugar do Senhor - lugar este que representa uma figura como o pai ou uma autoridade cultural, bem como um elemento simbólico representando poder e normas-, ele necessita que este lugar seja ocupado, caso contrário cairia a barreira do incesto, daí a luta interna entre o desejo e o medo de ceder à ele. Por este ponto que a culpa pode ser vista: um ponto de ambivalência que catapulta o obsessivo obstinadamente à suplantar o lugar do Senhor ao mesmo tempo que almeja sua permanência a fim de não ter o desmedido gozo erotizado e incestuoso da relação com a mãe, em outras palavras: a fantasia do “gozo sem falta”.
É comum dessa estrutura a perda de interesse após a conquista do objeto e/ou o domínio do gozo (lugar do pai). Como a fantasia engendra a conquista do troféu, ao conquistá-lo a NO necessita desta interminável ascensão rumo ao controle absoluto do gozo, assegurando o controle onipotente do objeto, porém sem perceber que dificilmente o resultado será atingido.
Em virtude desta ambivalência relativa à Lei do pai, outra manifestação característica da NO é a transgressão que consiste no flerte entre manter a lei, ordem, justiça, honestidade e moralidade e a vontade de transgredir e subvertê-las, agindo de forma contrária à isso que se sustenta de forma rigorosa em sua postura. Segundo Dor, um dos únicos registros em que a transgressão real pode se valer é no terreno sexual e das relações amorosas, onde ela se realiza principalmente ao modo do acting-out. Um exemplo disso é de uma pessoa com essa estrutura que socialmente defende e acha imperdoável uma violência feminina, no entanto sente um enorme prazer em bater e dar tapas na pessoa que se relaciona sexualmente.
XVIII - O obsessivo e seus objetos de amor
O ponto crucial da estratégia de um obsessivo é impedir qualquer manifestação de desejo do objeto amado, posto que esta manifestação tira o obsessivo de seu lugar de gozo e controle, pois jaz na ante-sala de seu esforço e investimento a iminência da falta.
Qualquer neutralização de sinais exteriores que possam ameaçar a perda do objeto arremessando o obsessivo de cara com a falta, este não medirá esforços em agir em cima dessas neutralizações.
A condição que permite o desejo do obsessivo em não encontrar nenhuma inquietação é suplantando qualquer possível desejo, qualquer possível gozo do objeto tornando-o "morto" em seus quereres. Um imperativo constante que o anima em sua relação é que o outro não deve nada demandar, pois se demanda é que deseja.
Perder o lugar de ser desejado pelo desejo do outro é a angústia do obsessivo.
*Será que aqui não há um ponto em comum entre neurose obsessiva e histérica?
Tais sujeitos mantêm um gosto imoderado pelo encarceramento amoroso. Dispendem tudo, sem moderação, para que o outro resida em uma prisão de primeira classe.
O não reconhecimento de seu desmedido esforço e investimento em cobrir qualquer necessidade do objeto amoroso cairá como a maior injustiça do universo para com o obsessivo.
A estratégia é clara: se apropriar de um objeto vivo tornando-o um objeto morto, permanecendo um relacionamento dentro de certo controle evitando qualquer alteração e perda.
Uma característica passível de ocorrer em uma relação é a transformação do objeto em algo indesejável, tornando lhe feio, mal cuidado, evitando que outras pessoas desejem.
Há um esforço em manter um recato de certos obsessivos quanto à educação, moral, etiqueta, bom gosto e boa aparência de si e de seu objeto amoroso.
Uma outra estratégia que soa como antagônica com a de tornar o objeto indesejável é a de erotizar o corpo do outro. Mas esta erotização não é todavia tolerável a não ser que o outro seja relegado ao nível de objeto. Já se depararam com situações, geralmente em festas, onde a mulher linda, bonita e maravilhosa entra muda e sai calada ao lado de
seu parceiro? Esta é possivelmente uma condição onde a erotização do objeto o torna imóvel, morto, assim como sabem que aquele carro caríssimo é do obsessivo, também o objeto erotizado é de sua propriedade, mantendo-o em um lugar de gozo de sua estrutura.
Uma mulher viva, que deseja, que dá vazão aos seus anseios, que busca, que corre atrás de suas conquistas é um dos objetos mais inquietantes e odiosos que um obsessivo pode experimentar. Ver que o outro goza sem seu consentimento, sem ser autorizado, é radicalmente intolerável.
Um morto não deve gozar. Um morto que goza é um traidor, pois, se goza, é porque deseja. Com que direito? O direito que quer, necessariamente, que o desejo de cada um esteja sempre submetido à lei do desejo do outro, coisa que o obsessivo, justamente, se esforça em não querer nem ouvir falar.
Caso haja a perda do objeto, o obsessivo pode se apropriar de uma estratégia de recuperação mostrando-se histérico, de forma caricatural, em identificar-se com o objeto que ele imagina ser aquele do desejo do outro. Isso traz as frases de "fazendo para agradar", "se submetendo aos desejos da pessoa", "se arrastando por ela/ele" e "se arrependeu do término e está fazendo de tudo para reaver a relação. Compra ingresso pro show do artista que a pessoa mais gosta, prepara o prato predileto, curte as mesmas coisas nas redes sociais, encontra assuntos em comum que são do agrado do objeto, enfim, as tramas e desdobramentos dessa dinâmica são infinitas. No entanto este comportamento do obsessivo tem uma consequência contrária ao que ele deseja, ou seja, acaba por afastar o objeto de desejo, a pessoa amada, e não atraí-la. A lógica é: quanto mais o obsessivo se esforça em ser tudo para o outro, mais significa a si como nada sendo. O que importa para o outro, é que um lugar seja dado para a falta, pois, sem falta, o desejo não se sustentaria.
A parceira feminina não se engana mais com estes comportamentos, exceto quando encontra nesses investimentos um
terreno favorável para a expressão das vantagens secundárias para sua neurose pessoal.
Resumo - O mito individual do neurótico ou Poesia e verdade na neurose (Jacques Lacan)
Pedro Paschuetto
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Numa tentativa de enquadrar a Psicanálise num conjunto das ciências, ela se apresenta numa posição muito particular. Quando não se classifica como uma ciência, dá-se uma ideia de seu contraponto, a arte. Se relacionarmos a Psicanálise com as artes liberais propostas no século VI d.C., que tinham como princípio não a mera formação do ser humano para o mercado de trabalho mas para um desenvolvimento intelectual e virtuoso mais abrangente, a Psicanálise tenderia mais à este enquadramento.
Nesse texto que estamos cartelando de Lacan, ele aponta que a distinção da Psicanálise para as ditas ciências e sua aproximação com as artes liberais, é que ela preserva em primeiro plano uma relação fundamental com a medida do homem, ou seja, uma mudança estrutural na relação do ser humano com ele mesmo de forma muito particular, fechada sobre si mesma, inesgotável, geradora de novos espaços e lugares interiores. Por este motivo a dificuldade em objetivar a experiência analítica explicita que no núcleo de si mesma a emergência de uma verdade da qual não pode ser dita. Esse conteúdo inesgotável que jaz na experiência analítica é o que aproxima quem fala, na tentativa de se aproximar do essencial, de seu próprio mito.
Nesse sentido o mito passa a ser uma formulação discursiva de algo que não pode ser transmitido e definido como verdade, pois ao seguir com o trabalho analítico o próprio setting tem a capacidade de demonstrar que essa continuidade é em si uma tentativa de aproximação da verdade, tendo como base uma relação intersubjetiva dando o estatuto mítico ao complexo de Édipo.
Propondo como base o mito edipiano a experiência analítica provoca certas modificações estruturais na compreensão deste processo, sendo o que nos permite compreender que a teoria analítica está baseada num conflito fundamental que, por intermédio da rivalidade com o pai, liga o sujeito a um valor simbólico essencial. Aqui "pai" recebe uma ampliação de entendimento, como por exemplo a inauguração da capacidade de um sujeito simbolizar.
Podemos encontrar a função do mito numa estrutura neurótica se o considerarmos como uma representação objetivada de uma história, exprimindo de maneira imaginária as relações fundamentais características de certo modo de ser humano numa determinada época: Hora virtual, hora fatídica, hora plena, hora esvaziada de sentido.
Será apresentado o Homem dos Ratos e a interpretação de Lacan do interesse de Freud por este caso.
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A tensão agressiva e a fixação instintiva, segundo Lacan, está na raiz da estrutura neurótica obsessiva.
O progresso da teoria analítica colocou na origem da compreensão da NO uma elaboração e certa identificação da gênese dessa estrutura, com determinados elementos e determinada fase de onde se originaram os temas fantasísticos ou imaginários.
O título Homem dos Ratos vem de uma fantasia fascinante: o relato de um castigo que consiste na introdução de um rato, por meios artificiais, no reto do paciente. Um horror é experimentado pelo paciente atualizando seus temas inconscientes suscitando uma angústia.
Essa fantasia é essencial para a teoria do determinismo desta neurose, mas como Freud destaca: cada caso deve ser estudado em sua particularidade, exatamente como se ignorássemos tudo da teoria.
A constelação familiar do homem dos ratos, à saber, seu relato acerca de um certo número de traços que contam as relações familiares fundamentais que estruturam a união de seus pais, mostra ter uma relação precisa com suas fantasias.
Seu pai foi um suboficial ficando "sub" por muito tempo, onde seu tom de autoridade se fazia ausente de respeito, desvalorizando-o numa estima de seus contemporâneos. Um misto de bravata (dici: modo de agir de quem faz alarde de uma coragem que não possui) e ostentação compõe o relato da figura de seu pai. Esse pai se viu em condições de
realizar do que se chama de casamento vantajoso, pois a mulher pertencia à uma classe mais elevada da burguesia. Logo, o prestígio encontra-se do lado da mãe. Havia certas provocações entre os cônjuges: ora em tom de brincadeira ora em caráter mais verdadeiro, onde a mulher faz uma alusão divertida a um vivo interesse do marido, pouco antes do casamento, por uma moça pobre, mas bonita, que o marido protesta e afirma que foi apenas um date efêmero de Tinder, sem profundidade.
Essa brincadeira impressionou o jovem e terá seu valor no desdobramento do tratamento.
Outro elemento neste mito familiar é de que o pai, em sua carreira militar, gastou uma grana preta em jogatina dos fundos do regimento confiados a ele pelo cargo que ocupava. Ficou devendo sua honra e até mesmo sua vida, ao menos em termos de sua carreira. Houve um amigo que lhe emprestou um dinheiro para tentar restituir a dívida bem como sua moral perante a sociedade. Esse amigo foi seu salvador.
O relato dessa constelação familiar vai sendo pouco a pouco contada durante as sessões, sem que o sujeito estabeleça qualquer ligação com seus sintomas atuais.
O conflito mulher rica / mulher pobre reproduziu-se no momento em que seu pai o pressionava para desposar uma mulher rica, e foi então que desencadeou a neurose propriamente dita. Ao trazer este fato, o sujeito diz quase ao mesmo tempo: "Estou lhe contando algo que certamente não tem nenhuma relação com tudo o que me aconteceu". Então Freud percebe imediatamente a relação.
O jovem homem dos ratos se vê numa condição de pagar o preço de um par de óculos que lhe pertence, e que perdeu em um momento onde lhe foi feito o relato do castigo em questão (do rato no reto) que lhe desencadeou a crise.
Aqui não entrarei em detalhes: uma por achar desnecessário tentar reproduzir o relato da angústia do jovem e outra por não ser o foco desse resumo, mas o cerne da questão é que o jovem se sente angustiado e sua mente cria um enredo extremamente conflituoso com uma dívida à quem deve pagar ou não-pagar: se tenente A, se tenente B ou se a mulher do correio, num roteiro impossível de seguir mas que provoca medo e atormenta infinitamente o jovem.
Esse roteiro fantasístico apresenta-se como um pequeno drama, uma gesta, que é precisamente a manifestação do que Lacan chama de o mito individual do neurótico.
Esse roteiro adquire um valor clínico na medida em que é apreendido subjetivamente pelo sujeito.
O que dá o caráter mítico ao roteiro fantasístico? De um lado, temos a origem de uma dívida do pai com o amigo que nunca foi reembolsada, pois ele nunca reencontrou o amigo. De outro, há também na história do pai a substituição da mulher pobre pela mulher rica. No interior da fantasia desenvolvida pelo sujeito, observamos algo como uma troca dos termos finais de cada uma dessas relações funcionais.
Tudo se passa como se os impasses próprios da situação original se deslocassem para um outro ponto da rede mítica, como se o que não é resolvido num lugar se reproduzisse sempre noutro.
No próximo capítulo será abordado um caso que tem relação com este apresentado, porém de outra ordem: à poesia ou à ficção literária. Um episódio da mocidade de Goethe que ele nos narra em "Poesia e verdade".
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Goethe está com 22 anos, mora em Estrasburgo e ocorre o lance de sua paixão por Frederica Brion, que ele recordará até idade avançada. Por meio deste lance que pôde superar uma praga lançada por um de seus amores anteriores, Lucinda, quanto a qualquer contato amoroso com uma mulher.
Um resumo da cena é a seguinte: a tal Lucinda tem uma irmã, esta, ligeira que só! Fez doutorado em manha-do-gato. Qualquer político perderia pra ela em esperteza. Essa irmã persuade Goethe dos danos provocados em Lucinda. Roga-lhe que se afaste mas antes, lhe dê o penhor do último beijo. Neste exato momento Lucinda aparece e diz:
"Malditos sejam para todo o sempre esses lábios. Que a desgraça recaia sobre a primeira que deles receber a homenagem."
Não foi sem motivo que Goethe em plena libido da adolescência conquistadora, recebeu a tal maldição que interditará seus xavecos futuros. Ele conta então como, excitado pela descoberta da moça encantadora que é Frederica Brion, consegue vencer essa interdição.
Há muitos aspectos enigmáticos na história que podemos quase dizer que é nos seus antecedentes que se encontra a chave do problema.
Goethe na época mora em Estrasburgo com um de seus amigos e conhece já faz tempo a existência, numa pequena aldeia, da família aberta, amável, educada e acolhedora do pastor Brion. Mas quando vai até lá se enche de firulas.
Primeiro, crê dever ir até lá disfarçado, pois é filho de um grande burguês de Frankfurt e se distingue entre seus amigos por sua desenvoltura, prestígio dado à suas vestimentas e uma superioridade social. Disfarça-se então de estudante de teologia com uma batina surrada. No entanto, ao chegar na família, dá bom os burros n'água! Se chateia ao perceber que a realidade da sedução evidente e radiante da jovem só poderá ser correspondida se trocar o traje, causando-lhe uma melhor impressão.
Ele dá justificações um tanto estranhas para esse disfarce, remete o disfarce que os deuses usavam para descer em meio aos mortais - ele mesmo ressalta isso, algo que confina com a megalomania delirante. É que por esta forma de disfarce, os deuses buscavam evitar aborrecimentos e era um modo deles não terem de considerar a familiaridade dos mortais como ofensas. O que os deuses mais arriscam a perder é sua imortalidade quando descem ao nível dos mortais.
Goethe ao retornar para Estrasburgo sente que cagou no pau, um pouco tardiamente, elementar, mas acha ter sido indelicado ao se apresentar numa forma que não era a sua, traindo assim a confiança daquelas pessoas que o acolheram de forma tão honesta e generosa.
Ao retornar à aldeia onde reside a família Brion, substitui seu primeiro disfarce por um segundo, que pede emprestado a um empregado de hospedaria, aparecendo de modo ainda mais estranho que da primeira vez. Ele coloca a situação no plano da brincadeira, um tanto significativa, pois dessa vez se situará num plano abaixo do estudante de teologia. Fazendo papel de bobo, faz todos que colaboraram com a farsa perceberem que aquilo se tratava de um jogo sexual, um jogo de conquista.
Quando Goethe na segunda vez vestido com a roupa do empregado de hospedaria se divertiu com muito tempo com o erro resultante, era, diz ele, portador de um bolo de batizado, homenagem tradicional ao pastor, não pode ser outra coisa senão uma fantasia de Goethe, adquirindo assim seu valor significativo. De modo que sua cerimônia aparece não só como um jogo, mas uma precaução, quanto que Lacan chamou há pouco de o desdobramento da função pessoal do sujeito nas manifestações míticas do neurótico.
Por que Goethe age assim? Segundo Lacan, porque tem medo - como a sequência do texto irá evidenciar, pois o relacionamento declinará. Longe de o desencantamento, o desenfeitiçamento da maldição original ter ocorrido depois de Goethe ousar transpor a barreira, percebe-se, ao contrário, os tipos de formas substitutivas que seus temores diante à realização daquele amor só fizeram crescer.
Diante da meta da conquista do objeto de sedução, notamos produzir-se novamente um desdobramento do sujeito, sua alienação em relação a si próprio, manobras das quais ele se dá um substituto o qual devem recair as ameaças mortais.
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O sistema quaternário tão fundamental nos impasses e nas insolubilidades dos neuróticos - o desejo incestuoso pela mãe, a interdição do pai, seus efeitos de barreira e os desdobramentos de sintomas - tem uma estrutura diferente, diferença essa que nos leva a discutir a antrolopogia de todo o esquema do Édipo até então apresentada. Hoje introduzo um quarto elemento nesse esquema.
A situação normativizante da vivência original do sujeito moderno está reduzida à família conjugal, ligada ao fato do pai ser o representante, a encarnação de uma função simbólica que atua como um encaminhamento do amor pela mãe à gozos simbólicos e culturalmente fundados.
A função do pai pressupõe que o simbólico recobriria plenamente o real, onde seria preciso que o pai não fosse somente o nome-do-pai, mas representasse em toda a sua plenitude o valor simbólico cristalizado na sua função. Claro que esse recobrimento do simbólico e do real é inapreensível, ao menos numa estrutura social como a nossa, o pai é sempre discordante com relação à sua função, um pai carente, um pai humilhado. Há sempre uma discordância percebida pelo sujeito no plano do real e a função simbólica. Nesse hiato é que reside o que faz com que o complexo de Édipo tenha seu valor - de jeito nenhum normativizante, mais frequentemente patogênico.
Até aí não trago nenhuma novidade que nos faça avançar muito, mas o próximo passo introduzido fará repensar essa estrutura.
A relação narcísica com o semelhante é a experiência fundamental do desenvolvimento imaginário do ser humano. A experiência do eu tem uma função importante na constituição do sujeito. É primeiramente num outro, mais avançado, mais perfeito que o sujeito se vê, depois em sua imagem no espelho, experimentando uma perturbação das funções motoras ainda não desenvolvidas, bem como as funções afetivas. Assim, o sujeito tem uma relação antecipada com sua própria realização que o lança à uma insuficiência, revelando nele uma rachadura e um dilaceramento original. Por isso é que em suas relações imaginárias o que se manifesta é uma experiência da morte, constitutiva das manifestações da condição humana, se mostrando especialmente na vivência dos neuróticos.
Se o pai imaginário e o pai simbólico costumam ser distintos, não é somente pela razão estrutural que indico, mas também de maneiras históricas, contingentes, particular a cada sujeito. Em neuróticos, é comum que o personagem do pai, por algum incidente da vida, seja desdobrado. Seja pela morte precoce do pai e substituição por um padrasto. Seja porque foi a mãe quem desapareceu e as circunstâncias da vida deram acesso a uma outra mãe. Seja porque o personagem fraterno introduz a relação mortal de modo simbólico e ao mesmo tempo a encarna de um modo real. Tudo isso deságua no quarto elemento mítico tão importante na história do sujeito.
Qual é esse elemento? Vou designá-lo dizendo que é a morte.
Concebemos a morte como elemento mediador. A metafísica hegeliana não hesitou em construir toda a fenomenologia das relações humanas em torno da mediação mortal, por meio da qual o ser humano se humaniza na relação com seu semelhante. Para o que expus da teoria do narcisismo, fica em aberto para Hegel pois, para que a dialética da luta até a morte e da luta por prestígio tenha início, é preciso que a morte não seja considerada, pois esse movimento não aconteceria, é preciso que ela seja imaginada.
É da morte imaginada e imaginária que se trata na relação narcísica. Ela que se faz motor na dialética do drama edipiano, e é dela que se trata na formação do neurótico.
Do símbolo e de sua função religiosa
Tudo o que um psicanalista pode dizer sobre o simbolismo, em geral ou em particular, isso nos levaria muito longe! Lembro que o símbolo talvez tenha essencialmente um valor de relação, usando este termo de forma um tanto genérica, de sujeito para sujeito.
O símbolo carrega uma função de linguagem, ou uma pré-linguagem. Do ponto de vista psicanalítico, isso nos interessa muito!
Uma das definições da palavra "símbolo" na língua grega remete à téssera quebrada cuja reunião constitui o que estamos buscando, o valor relacional do símbolo.
Uma téssera na roma antiga era uma plaqueta de metal que permitia acesso a determinados lugares e eventos, como uma senha. Logo, uma alusão que pode ser deduzida é de que um símbolo é algo que permite o ingresso a um registro, à uma linguagem, à uma certa forma de existência.
Um símbolo possui uma noção universal e universalizante, uma vez que ele constitui, como tal, um universo.
Seja qual for o lado que tomemos a experiência do símbolo, é sempre da noção de reunião que se trata. Reunião de entendimento, reunião de mensagem, reunião de representação, etc.
Se há de fato uma coisa onde a função criadora, fundadora do símbolo se mostra, essa coisa é a fala. Fala que estabelece e funda entre os sujeitos uma relação que, justamente, não toma os dois sujeitos tal como são, para reuni-los. Ela constitui como sujeitos na própria relação que os faz ter acesso a uma nova dimensão.
Há pouco disseram que eu estava falando do "social". De jeito nenhum! O social está marcado pela função da fala, ela está impressa nele. Há outros sociais convenientes, como animais onde não há fala.
O mesmo se aplica ao uso da noção de inconsciente como coletivo.
Eu não faço ideia do que seja isso e desafio alguém a me dizer o que significa, só sei defini-lo como o discurso sem significação, o flatus vocis, o discurso insensato na medida em que une, em sua vibração geral, aqueles que são seu suporte.
No geral, a coletividade não sabe o que diz, não sabe o que quer falar naquilo que é dito, conservando assim um valor no discurso independente de qualquer sentido assumido. Como disse em algum lugar Mallarmé (poeta e crítico literário francês), "o discurso humano é algo parecido com aquela moeda com a imagem apagada que passamos de mão em mão". E isso serve para algo, serve para a gente não se agarrar pelos cabelos, não se cortar o pescoço todas as vezes! Jogamos conversa fora e, graças a isso, Deus do céu, a gente parece se entender, o que já é suficiente.
O que é a fala? Uma coisa a notar é o que a fala, em sua função simbólica, introduz no mundo.
Tomamos a noção de mundo a partir da fala, que, antes dela não temos coisa nenhuma, é o nada, o caos e o espírito de Deus talvez flutuando sobre as águas.
A partir da fala, surge algo no mundo que é novo e que introduz nele transformações poderosas. A fala aqui não me refiro ao "ato de transmitir palavras pela boca através da vibração das cordas vocais", mas de que a ação humana por excelência é a fala. Uma pintura é uma fala, um objeto fabricado é uma fala, uma escultura é uma fala, um instrumento fabricado é uma fala.
Só que uma coisa é saber o que se faz, e outra, parar para sabê-lo, ou seja, tomar minimamente consciência do que move ao próprio ato.
Santo Agostinho, que lemos de tempos em tempos, já fez observações de valor inestimável sobre a fala, sublinhando seu valor de signo, mas ele despreza coisas que não são menos preciosas. Estaríamos equivocados se pensássemos que a fala é feita para servir de signo, quando, na sua essência, ela tem por função operar o reconhecimento do sujeito pelo sujeito.
A fala é função de reconhecimento, e é no interior dessa função que ela opera para categorizar, polarizar, ordenar. A fala se ordena na dimensão da verdade, na medida em que a verdade é uma coisa e a realidade, outra. A fala introduz uma dimensão diferente na realidade, que é a da verdade.
A verificação da fala tem dois modos possíveis, ou bem a continuação do discurso, ou então o que chamamos comumente de experiência.
Acreditamos que na experiência, manipulamos verdadeiramente o real fabricando metáforas em que nos transformamos em seres providos de todo tipo de palmas, que dão a volta no tronco das árvores e nas pedras, farejando-as, como se, às apalpadelas, como os animais, seguíssemos a pista da verdade para perceber o que é o real.
A função humana introduz no mundo uma perturbação fundamental, um novo registro, uma nova ordem, a da fala e da verdade.
Isso não quer dizer que seja a mesma coisa! O simbólico está aqui e o real está aqui, e o homem está no meio.
O que mostra o que uma fala é, essencialmente, é a palavra dada.
O que é a palavra dada? Ela é, por exemplo, essa coisa absolutamente insensata constituída pelo ato delirante que consiste em dizer a uma mulher "Você é minha mulher".
Imaginem só este absurdo! Espero que todos vocês percebam o caráter inverossímil desse salto no escuro que, no entanto, é dado todos os dias, numa inconsciência, graças a Deus, completa! O símbolo está aí.
Começamos a esquecer que quem tem a fala somos nós, sigo, "nós a temos", não digo "nós a somos". Toda a questão reside aí. Temos a fala, e não digo que não pensamos nisso, pois pensamos, muito até, mas tendemos a reduzir sua importância. "São só palavras", dizemos, "continue falando".
Se a descoberta de Freud faz algum sentido, só pode ser um, de que o homem esquece que é portador da fala, ele já não fala, a maioria das pessoas não fala, elas repetem, não é exatamente a mesma coisa. Quando a pessoa já não fala, ela é falada.
O que isso quer dizer? Que o sintoma neurótico não é um signo, é uma fala, estruturada como uma linguagem com estas duas funções essenciais, o significante - o suporte material, o vocábulo que estou emitindo sob a forma articulada, silábica pela qual me faço entender - na sua relação com a significação.
O sintoma é, na ordem científica, uma coisa única na medida em que é sobredeterminado. No mundo humano há uma única coisa sobredeterminada além do sintoma freudiano, é a linguagem, pois ela comporta duas cadeias paralelas, que são o sentido e a forma. De um lado, há a gramática, as leis da retórica e, de outro, o que você quis dizer, o emprego das palavras, e depois a significação única de cada frase. Vocês encontram no sintoma essa duplicidade essencial.
O sintoma de um sujeito particular é uma fala, fala amordaçada, inconsciente para o sujeito. O modo de abordagem psicanalítico consiste em elaborá-lo pela particularidade da história desse sujeito, e é sobre isso que é preciso se deter para conhecer tanto o sentido como os limites da ação analítica.
"Uma fala inconsciente", não se trata do caráter negativo: "Isso não é consciente", mas que o sujeito falante, ultrapassa e extrapola em muito o sujeito consciente. Porque o sujeito fala, ainda que não saiba absolutamente nada sobre isso, com ele todo, com sua pele, com sua carne, com seu modo de tropeçar, de cometer um lapso de língua, com sua forma de se comportar na vida para que tudo sempre acabe mal.
