Escritos do grupo de estudos da obra "Ser e o evento" de Alain Badiou
Neste livro fundador e indispensável, Alain Badiou busca articular uma filosofia que, em relação ao pensamento do ser, abra um caminho alternativo a Heidegger, o matema prevalecendo sobre o poema. Com este objetivo, esboça um quadro conceitual no qual conjugam-se a matemática pós Cantor, a arte contemporânea e a política. Obra que sistematiza todo o pensamento do autor, considerado a grande personalidade da filosofia atual
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Índice de Textos
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O sujeito da matemática
Patrícia Mezzomo
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O tempo do pensamento está aberto para um regime de apreensão diferente, encerrando a idade metafísica.
A questão do sujeito, agora não encontra mais suas bases apenas em teorias do ser. Vivemos em uma época complexa que não se deixa subsumir a um vocábulo único.
Psicanálise, filosofia e também a matemática se unem em torno do problema da questão do sujeito.
O que é o sujeito? Como podemos conhecê-lo? Até onde ele é conhecível? O que não é conhecível desemboca em quais consequências?
A questão do ser é uma questão ontológica. A ontologia sempre esteve na letra dos filósofos, mas somente agora, possuímos as condições necessárias para avançar em tal questão e talvez devolver a ela, filosofia, o que dela é de direito, o zelo das verdades, libertando-a da ontologia do ser-enquanto-ser.
A doutrina do sujeito contemporâneo é a questão da ontologia matemática. As matemáticas são a ontologia. Longe de serem um jogo sem objeto, elas extraem a severidade excepcional da sua lei do fato de estarem condenadas a sustentar o discurso ontológico. Daí surge a pergunta: sendo a matemática pura ciência do ser, como o sujeito é possível?
Badiou tentará responder essa pergunta a partir da teoria dos conjuntos, culminando numa doutrina pós-lacanina, apoiada em Cohen. A matemática pronuncia o ser. Ela esvazia o problema dos objetos, pois não há objetos matemáticos, portanto nada tem a apresentar, salvo a própria apresentação. A maneira de pensar dos números parece abrir caminho para certezas menos precárias.
Se foram os filósofos que formularam a questão do ser, foram os matemáticos que efetuaram a resposta a essa questão. As matemáticas são o único discurso que “sabe” absolutamente o que fala: o ser, o ser enquanto falta.
Na psicanálise, Lacan nos apresenta a lógica pura como ciência do Real. E o Real continua sendo uma categoria do sujeito. O Real é o impasse da formalização e as matemáticas escrevem aquilo que, do próprio ser, é impronunciável.
Porém, apesar da questão dos ser, unir psicanálise, filosofia e matemática, a matemática ontológica não convém aos filósofos nem aos matemáticos. Para os filósofos, essa tese os despoja do que continuava a ser o centro de gravidade de sua fala e as matemáticas, de fato, não tem hoje necessidade alguma da filosofia, e assim, podemos dizer, o discurso sobre o ser perpetua-se “sozinho”.
Para Heidegger - o último filósofo universalmente reconhecível - as matemáticas não são a via de acesso à questão original, mas sim, a própria cegueira, ao preço do esquecimento do ser. Ele ainda continua submetido à essência da metafísica em uma ontologia poética, povoada pela dissipação da Presença e a perda da origem. Porém, não é no enigma e no fragmento poético que a origem se deixa interpretar. Se a filosofia nasce na Grécia, é porque aí a ontologia se estabelece, com os primeiros matemáticos dedutivos, a forma obrigatória do seu discurso. Em oposição do poético, fica a dimensão radicalmente subtrativa do ser, excluído não só da representação, mas de toda apresentação. O ser é o soberano nulo da interferência. A ontologia poética, que está no impasse de um excesso de presença em que o ser se esquiva, deve ser substituída pela ontologia matemática, em que se realizam, pela escrita, a des-qualificação e a inapresentação.
Já nas matemáticas, temos o direito, por nossa vez, de suspeitar que os matemáticos são tão exigentes no que se refere ao saber matemático na exata medida em que se contentam com pouco - quase nada - quanto à designação filosófica da essência desse saber. A eles, é preciso torcer, que se convençam de que a verdade que está em jogo aí, é o fato de ter sido confiado a eles, para sempre, o “cuidado do ser”. Essa é a verdade que separa a matemática do saber e a abre ao evento.
É em Paul Cohen - que concluiu o grande monumento de pensamento começado por Cantor e Frege - que Badiou se apoia para criar sua doutrina. Os conceitos de Cohen renovam as esperanças filosóficas e abrem o pensamento para a captura subtrativa da verdade e do sujeito.
Este livro destina-se a comunicar que teve lugar, no início dos anos sessenta, uma revolução intelectual de que as matemáticas foram vetor, mas que deixou radicalmente de fora o evento Cohen, de toda intervenção e de todo sentido, que praticamente não existe versão sua, mesmo puramente técnica, em língua francesa.
O ser não é um
Patrícia Mezzomo
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Avançar a letra de Badiou nos arremessa diretamente ao ineditismo, para não dizer angústia, a respeito da ignorância acerca do vocabulário matemático e filosófico que esta obra suscita.
Já na introdução do livro, O ser e o evento, somos advertidos sobre uma nova forma de ontologia, que encontra sua linguagem na matemática.
Sabemos logo de início que o tempo da metafísica se encerra com o marcador heideggeriano, e agora adentramos o universo matemático de Cantor, Frege, Godel e Cohen para encontrar a apresentação da apresentação do ser.
O axioma tradicional da filosofia agora já não nos serve mais. O um não é recíproco ao ser, o que nos leva ao raciocínio lógico de que o ser não é um. O ser não é e também não é um.
Pensamos então que tipo de aproximação faremos ao ser, através das matemáticas.
O um torna-se agora um resultado de uma operação. O operador de uma multiplicidade denominado conta-por-um . O um é um número, não mais um ser, é o número de uma estrutura. Uma estrutura de apresentação que subtrai o ser mas que somente através dela, apresenta-o.
Badiou sustenta a tese de que a ontologia é uma situação. Uma situação, por sua vez, é uma apresentação de multiplicidade, que operando, tem como resultado a conta-por-um. E essa situação que subtrai o ser, mas que permite falar do ser-enquanto-ser, se mostra contrária ao que ele denomina ontologias da presença. “O conjunto oporá à tentação da presença o rigor do subtrativo, em que o ser não é dito senão por ser inconjecturável por toda presença, e por toda experiência”. É na subtração, na ausência, na situação que é possível formular o ser-enquanto-ser. Qualquer tentativa de presentificação, afirma o caráter fugidio do ser. “Nenhum acesso ao ser se oferece a nós afora as apresentações”.
A despeito de toda a investigação que ainda será feita sobre o tema, tento então uma aproximação com o que nos interessa enquanto psicanalistas, me apoiando no raciocínio da dupla significante - objeto a, supondo uma análise como uma situação. Se a estrutura que Badiou nos apresenta articula a multiplicidade com um operador que traz como resultado a conta-por-um, poderíamos por analogia, pensar o significante com um operador que traz como resultado o objeto a? Seria o a, o número da psicanálise? Um número que não é o ser, como já vimos, mas um resultado de uma operatória significante? Nessa lógica é possível pensar o sujeito como aquele subtraído dessa estrutura, que só se apresenta via significante e tem como resultado, como produção, o objeto a?
O múltiplo é aquilo que para que seja múltiplo, jamais encontra um conceito definido de múltiplo. Já sabemos, como analistas, que um significante é aquilo que não possui significado em si, mas que representa algo para outro significante. É a forma, ou som, de uma palavra, em sua presença ou ausência, que, por si só, não tem significado, mas que, em conjunto com outros significantes, cria significados.
Sigo então a hipótese de correspondência entre múltiplo e significante e entre um e objeto a, concluindo por lógica que os números para a matemática correspondem às palavras para o analista. Então o operador anunciado por Badiou, que leva ao resultado da conta-por-um, poderia ser o nosso ato analítico?
Ato que subtrai, soma, divide, multiplica, não os números, mas sim as palavras, chegando a resultados diferentes dos inicialmente apresentados em uma demanda de análise?
Em síntese, a ontologia matemática de Badiou nos oferece uma nova perspectiva para entender ainda melhor a psicanálise de Lacan. Aproximar o raciocínio e o objeto da matemática com o objeto da psicanálise, nos possibilita uma escuta mais precisa e lógica do discurso do analisante. Lógica essa que nos permite alcançar melhor a distância entre significante e significado na escuta analítica. Escutar palavras como números ao invés de escutá-las como significados torna realmente possível a operação lógica do ato analítico e nos deixa a salvo de qualquer necessidade de entendimento imaginário do que é dito em setting.
