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Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise

Este texto de Lacan representa uma ruptura em relação à psicanálise clássica, ao colocar a linguagem no centro da análise. Ele abriu caminho para novas interpretações da clínica psicanalítica, com foco na dimensão simbólica e na relação entre sujeito e linguagem.

Índice de Textos

Interpretações x Atos Analíticos

Texto originado do Função e Campo da Fala e da Linguagem, para o Grupo de Leitura Intermitente da EPE

Por: Aline Dornelles, psicanalista.

Os estudos higiênicos da obra lacaniana, nos apontam hoje um duelo interpretação x ato analítico. Clínicos mais desavisados os tomam por sinônimos. Algumas análises são levadas assim, entre atos e interpretações, clinicamente não vejo iatrogenias nos atos analíticos que por vezes tornam-se tão motores de uma análise quanto a própria transferência.


Das iatrogenias que posso citar em relação a interpretação, as principais referem-se a uma interpretação simbólica direta com significados pré estabelecidos que podem subverter a cadeia significante que poderia ser formada, advindo também o sujeito do inconsciente que agora assujeitado a significação se perde em uma psicoterapia quase psicodélica. Já o ato analítico que a princípio pode apresentar as tais características psicodélicas( porém são recheados de segundas intenções por parte do analista) produz (o ato), um efeito de separação do sujeito em relação ao saber suposto do analista.


Os efeitos interpretativos ao longo dos anos de prática deram ensejo na prática a um distanciamento do sujeito, aquele advindo entre significantes, da intersubjetividade da sua própria fala.


O risco da interpretação é, desde Freud até hoje que o clínico fique capturado pela escuta do fenômeno falado , capturado pela cena fantasmática e impossibilitado de formar o bucle, e por consequência impossibilitado de facilitar alguma torção, o que daria ao sujeito um saber fazer com sua repetição.

Que sigamos estudando textos clínicos freudianos como Dora, Homem dos Ratos, Pequeno Hans, pela riqueza fenomenológica e descritiva da obra, porém advertidos das palavras do próprio Lacan, em Função e Campo: “essas observações definem os limites em que é impossível a nossa técnica desconhecer os momentos estruturantes da fenomenologia hegeliana: em primeiro lugar, a dialética do Mestre/ Senhor e do Escravo, ou da bela alma e da lei do coração, e de modo geral, tudo o que nos permita compreender como a constituição do objeto se subordina a realização do sujeito.”

21/06/2024, S2 da leitura de 14/06/2024, texto referente a parte do texto do título I do artigo “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (pp. 249 a 254)

 

Josiane Tibursky

Lacan discorre sobre o efeito de dar a palavra ao analisante e explica como este, ao falar em livre associação, em vãs tentativas de apontar seu caráter essente, percebe-se uma criação imaginária, percepção esta que lhe afasta do campo das certezas, visto que sua fala, vez após outra, falseia, tropeça. O mecanismo é este: ao apresentar tal criação para um outro, “ele reencontra a alienação fundamental que o fez construí-la como um outro, e que sempre a destinou a lhe ser furtada por um outro”. 


O ego, portanto, não é essa instância psíquica que opera a mediação entre outras duas instâncias, num processo de economia, e que proporciona o conhecimento da realidade. Ele é o próprio engodo. Quanto mais é acrescido a essa criação imaginária, tanto mais objeto, mais alienado no desejo do Outro. O manejo pautado num reforço ao eu é, lógico, invalidado por Lacan, e o analista não deve atrelar o significante ao significado, apontando sempre para o intervalo, até que não restem mais certezas e que se consumem as últimas miragens do falasser, até que desista de falar para ser e empenhe sua palavra em outra direção. 


Esse blá-blá-blá, no entanto, que pode parecer meio vazio, nos lembra que a fala, ainda que empenhada meio displicentemente, mantém seu valor simbólico, seu valor de passe. Mesmo que vazio, o discurso revela a própria estrutura, que é justamente o que propicia o próprio discurso vazio, mas não só ele. O analista pesca, em sua escuta flutuante, uma palavra e, apostando nela, a eleva a significante e, voilá, pode ser que o discurso, a partir do corte, então ganhe sentido. 

29/11/2024, S2 da leitura de 22/11/2024, texto referente a parte do título II do artigo “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (pp. 268 a 273)

 

Josiane Tibursky

Nesse trecho lido no encontro passado, Lacan aborda a questão de o inconsciente ser estruturado como uma linguagem e algumas decorrências desse fato. Podemos vê-lo apontando no texto de Freud onde se apoiou para defender, por exemplo, a inversão que é feita do “Tu és” para o “Eu sou”, costurada no desejo, que é sempre o desejo do Outro: 


Se Freud admite, como motivo de um sonho que parece contrariar sua tese, o próprio desejo de contradizê-lo, no sujeito que ele tentou convencer, como não viria a admitir o mesmo motivo para si próprio, considerando que, para ter chegado a isso, é de um outro que lhe teria advindo sua lei?


Mais adiante, Laca vai afirmar que “já está perfeitamente claro que o sintoma se resolve por inteiro numa análise linguageira, por ser ele mesmo estruturado como uma linguagem, por ser a linguagem cuja fala deve ser libertada”. Daqui podemos depreender que o próprio inconsciente é o sintoma. Essa fala que deve ser libertada, que extravasa na forma de chistes, essa verdade que escapa e que, no fundo (ou não tão no fundo assim), deixa seu enunciador “feliz por tirar a máscara”, só pode ser libertada no próprio ato que a gera. E Lacan nos lembra da liberdade presente no sujeito do inconsciente, que se abre no tratamento desenhado pelo ato psicanalítico: “era realmente o verbo que estava no começo, e vivemos em sua criação, mas é a ação de nosso espírito que dá continuidade a essa criação, renovando-a sempre. E só podemos voltar as costas para essa ação deixando-nos impelir cada vez mais adiante por ela.” 

16/05/2025, S2 da leitura de 09/05/2025, texto referente a parte do título II do artigo “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (pp. 291 a 295)

 

Josiane Tibursky

“Mas não se trata de imitá-lo. Para resgatar o efeito da fala de Freud, não é a seus termos que recorremos, mas aos princípios que os regem. Esses princípios não são outra coisa senão a dialética da consciência de si (...) mas a descoberta freudiana consistiu em demonstrar que esse processo verificador só atinge autenticamente o sujeito ao descentrá-lo da consciência de si.” 


O efeito da fala é ao que visa o ato, e Saussure estabeleceu os primeiros princípios da fala e da linguagem, abrindo uma trilha que Lacan tomou para si e transformou não numa autoestrada, mas num caminho que, embora eficaz, não está lá nem pode ser trilhado duas vezes, ainda que, quando trilhado, o efeito seja sempre o mesmo.


Mas tal trilha, sob o efeito de resistências, opera um tal esquecimento que tem o dom de transformá-la em labirinto, que leva não à criação do sujeito, descentrado, vivo, mas ao centro, a um eu que é. Esse esquecimento gera infindáveis “novas tendências” — novas aparências, eu diria, porque, vistas de perto, têm a mesma cara, tal como o agente Smith, de Matrix. Lacan já criticava a ego psychology antes desse artigo, mas é ele que vai marcar seu retorno a Freud, é ele que vai fincar a bandeira da defesa de se apoiar no inconsciente como estruturado como uma linguagem. 


Para além do que sempre é comentado dessa frase clássica de Lacan, há que se ater também ao fato de que, por ser estruturado como uma linguagem, inclui o Outro. Sim, o Outro existe — não só existe como estou misturado a ele, ele está em mim, e também por isso falo à minha própria revelia, e disso decorrem meus sintomas, frutos da entrada na linguagem. Afirma Lacan, então, que para que possamos liberar a fala do sujeito, precisamos introduzi-lo na linguagem de seu desejo.  

20/06/2025, S2 da leitura de 13/06/2025, texto referente a parte do título II do artigo “Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise” (pp. 295 a 299)

 

Josiane Tibursky

Mais uma vez estamos diante da oposição entre interpretação e teoria significante, onde cabe também trazer para a conversa a noção de uma linguagem neutra, clara, que equaciona a linguagem ao signo, que contrasta com a ideia de polifonia, do que pode também ser lido no que foi dito à revelia do que se quis dizer, daquilo que escapa quando se diz. Numa linguagem neutra (e parece que a ideia da existência dessa tal linguagem nunca sai de moda!), não há espaço para a incidência do inconsciente, não há espaço para o tropeço, a falta, o mal-entendido não enquanto erro, mas enquanto — talvez — o próprio acerto ao alvo.


É fundamental que definamos o conceito de linguagem que adotamos. No nosso contexto, no exemplo das abelhas, entendemos que temos, sim, comunicação, mas não linguagem, pois, embora haja uma mensagem que é transmitida, não há justamente a relação existente entre os signos que proporcione que eles adquiram valor, o que só acontece na sua interação uns com os outros, “tanto na divisão léxica dos semantemas quanto no uso posicional flexional dos morfemas”, fundamento em que reside a diversidade (e complexidade) das línguas humanas. 


Essa linguagem dita neutra, que não admite o buraco, que não permite a presença da ausência, muito facilmente cai num certo e errado, e, porque não dizer com todas as letras, num fascismo mesmo, visto que se fixa — e cá estamos nós, mais uma vez, às voltas com a metáfora e a metonímia. Para além do espaço restrito do setting, a dialetização, que objetiva afrouxar e diminuir sofrimentos muito específicos, muito pontuais, que é a nossa causa, também tem a capacidade de possibilitar que sofrimentos provenientes da estrutura social em que vivemos possam talvez ser abordados e em algum nível entendidos, para, quem sabe, proporcionar que criações mais interessantes e laços sociais menos doentios possam ser pensados.   

Função e campo da fala e da linguagem

Patrícia Mezzomo

Em seu texto histórico professado em Roma, Lacan, com seu sempre estilo irônico de apontar falhas e fazer denúncias, nos apresenta logo no início, seu objetivo com seu discurso, a saber, renovar os fundamentos da linguagem.


Teriam as regras freudianas, que se estabeleceram pelo mestre de Viena, com o intuito justamente de fazer sobreviver a psicanálise, tornado-se a fonte de sua própria falência? Ou se quisermos sermos mais otimistas, deixado a psicanálise sobrevivendo por aparelhos? Ora, sabemos que desde a morte de Freud, a psicanálise tomou rumos um tanto quanto conflitantes com seu sentido original.


Com a predominante função do imaginário, das relações de objetos e da relevância dada ao ser do analista em sua própria formação e clínica, testemunhamos um afastamento derradeiro das funções simbólicas que poderiam preservar o sentido da obra freudiana.


É no próprio domínio do imaginário que encontramos o engano e por consequência o mestre. Par a par imaginário e doutos seguiram enrijecendo regras, confundindo-as com certezas e penalizando o risco de iniciativas que pudessem trazer a psicanálise de volta “à vida”.


Pois bem, é nessa cruzada que nosso psicanalista da linguagem se engaja, na tentativa, sabemos agora vã, de atualizar dentro do meio psicanalítico, nossa disciplina, não para romper prematuramente, pelo menos não em 1953, com a fenomenologia freudiana, mas sim para estabelecer equivalências com a linguagem atual de disciplinas que só podem trazer benefícios à psicanálise, como a linguística, o estruturalismo e a matemática.


Mas como apontar o furo, a falha do rumo que havíamos tomado, como disciplina, se para isso é necessário sair do campo ou discurso do mestre para o discurso do analista, se a própria geração havia tamponado esse furo com a psicanálise do erro, quero dizer, do ego? Como enxergar o furo da ignorância se a tamponamos com um saber equivocado, que impede questionamentos e impede a dialética, se conformando a abordagens imaginárias que só servem a manutenção de seus próprios sintomas?


Se olharmos a história, veremos que as resistências tiveram seu êxito na manutenção dos sintomas de toda uma geração de analistas, e foi necessário o corte, a ruptura, a escansão para que ato lacaniano pudesse renovar a psicanálise. Se o ato faz retroagir, a retroação nos leva à renovação da fala. A cura pela fala agora se renova em inconsciente estruturado como linguagem. Seria a fala o S1 da psicanálise?

A psicanálise dispõe de apenas um meio: a fala do paciente

Patrícia Mezzomo

Porque nos desviamos da descoberta genial de Freud? O que acontece para que os fundamentos de uma técnica sejam banidos da própria técnica em si?


Falar é mesmo assim tão perigoso?

 

Somos testemunhas, ao longo dos anos, da aversão estabelecida em nossos campo, à função da fala. Desde Freud, o que se estabelece são desvios que tornam medíocre nosso ofício. Seja na função do imaginário impulsionado pela análise de crianças, seja nas relações libidinais de objeto que partem de uma extensão do método ao tratamento das psicoses ou, seja ainda, na importância da contratransferência que coloca ênfase no ser do analista, o que vemos aí, apesar da atividade pioneira dessas técnicas, é a deturpação deste pioneirismo em nome de uma única razão: a tentação de abandonar o fundamento da fala.

 

Porém, a psicanálise só dispõe de um único meio e é dele que se trata, a fala do paciente. Sem fala, não há psicanálise.

 

E para além da fala, há que se entender que o ofício do psicanalista é a sua escuta. Seria possível afirmar então que o desvio histórico denunciado por Lacan é o desvio da escuta?

Tal desvio não apenas muda a rota da psicanálise, ele o coloca na contramão da descoberta freudiana, a descoberta do inconsciente.

Ironicamente, a escuta do inconsciente passou a ser a escuta do ego. Tragédia anunciada. A falta de conhecimento do próprio ofício só faz denunciar a obtusidade diante do objeto da psicanálise per se, a saber, o sujeito.

A escuta da fala do paciente, que a princípio parece vazia, faz o analista do ego tentar fazer sutura, tentar responder ao engano, responder a esse ego. E qualquer confirmação dessa fala, aprofunda ainda mais a alienação própria do sujeito, já que responder ao engano, seria confirmar tal engano. Quanto mais a alienação se aprofunda, mais é o gozo do outro que ele faz reconhecer ali. É por isso que não há resposta adequada para esse discurso, pois o sujeito tomará por desprezo qualquer fala que se comprometa com seu equívoco, ou seja, mesmo sem saber, ele sabe.


O analista que sabe do seu lugar, então trabalha, se prepara e aprende, para poder operar sua técnica fundamentada na escuta do inconsciente, na escuta do sujeito. Ele não deve aliar-se jamais a outro, que não seja esse sujeito do inconsciente. Sua arte está justamente em suspender as certezas imaginárias, fazer cair fantasias que dão sentido ao erro de si. E é apenas através do discurso que essa resolução encontra seu caminho.


Se é no discurso que o outro fala, é no discurso que o analista opera. Ainda que esse discurso pareça vazio, ele só o é quando o tomamos por seu valor aparente, pois com ele é possível pontuar, suspender, dar sentido, mudar o sentido, escandir, rumo a sua decomposição, etapa por etapa. O discurso é, e somente ele, o instrumento do ofício psicanalítico.

O sujeito freudiano

Patrícia Mezzomo

Para que a psicanálise se torne uma ciência, devemos resgatar o sentido de sua experiência. Nada melhor para isso do que retornar à obra de Freud. Retornar para tentar resgatar o grão da verdade fundamental que se perdeu no mal-entendido entre o escrito e o lido. Como encontrar o sujeito numa análise do eu? 

A fuga obcecada daquilo que não se pode tocar, ou seja, a linguagem, fez de alguns analistas perseguidores desse para-além da linguagem, desembocando numa vã psicanálise das relações de objeto. Vã, porque é desprovida da verdade do sujeito, desprovida da verdade de que o inconsciente não está no além, no profundo ou em outro lugar, mas sim na superfície, na linguagem, ali mesmo onde se fala. Está entre o analista e o analisando.

Onde então está o sujeito em Freud? O sujeito está na ambiguidade, no sintoma, no desejo. O tempo inteiro, Freud nos dá chaves de leitura que serviriam perfeitamente ao leitor atento ao outro sentido que não o sentido do eu.

Em "A Interpretação dos Sonhos", Freud nos dá uma chave de interpretação: o sonho tem a estrutura de uma frase, atendo-nos à letra de um rébus. Ele nos ensina a ler o sonho, mesmo com todas as dissimulações que o sujeito modula seu discurso onírico. Em parte alguma, evidencia-se mais claramente que o desejo do homem encontra seu sentido no desejo do outro. Então, se o desejo não é meu, de quem é? Quem é esse que deseja por mim ou em mim?

Em "A Psicopatologia da Vida Cotidiana", está ali outra chave de interpretação: todo ato falho é um discurso bem-sucedido. É ali no nó da linguagem que um outro sentido, uma outra verdade, uma sobredeterminação, escapa ao discurso daquele que fala. E isso que escapa, revelador de uma verdade, tem uma característica de ineditismo e estranhamento. O que foi isso que eu falei? Fui eu mesmo que falei?

Em "O Chiste e sua Relação com o Inconsciente", encontramos ainda a obra mais incontestável, porque a mais transparente, em que o efeito do inconsciente nos é demonstrado até os confins de sua fineza; e a face que ele nos revela é justamente a do espírito, da espirituosidade, na ambiguidade que lhe confere a linguagem. Em parte alguma, com efeito, a intenção do indivíduo é mais manifestamente superada pelo achado do sujeito - em parte alguma a distinção que fazemos entre ambos faz-se sentir melhor -, uma vez que não só é preciso que alguma coisa me haja sido estranha em meu achado para que eu extraia dele meu prazer, mas também porque é preciso que permaneça assim para que o achado surta efeito.

O sujeito freudiano se revela então nessa surpresa, nessa estranheza, na ambiguidade que se revela ao falar a um terceiro ouvinte sempre suposto, atento ao que somente a linguagem pode revelar. Sem uma análise de linguagem, não encontramos a surpresa e tampouco o sujeito e só nos resta o objeto, o eu É na linguagem concreta que reside tudo o que a análise revela ao sujeito como seu inconsciente.

O desejo é o destino

Patrícia Mezzomo

“O homem fala, pois o símbolo o fez homem”. Minha mente tenta mas fracassa em não fazer o comparativo do ovo e a galinha. Afinal quem nasceu primeiro, o homem ou o verbo?

 

Tendo a responder que foi o verbo, mas me pergunto: então quem o disse?

 

Logo me lembro que a origem está perdida, mas que essa perda segue marcando sua presença. Presença em ausência. A palavra é feita de ausência, pois ela é apenas isso, uma palavra. Ela não é coisa, pois a coisa, ao que me parece, dizem, está perdida. Como nunca a encontrei - a coisa -, mas encontro palavras, sigo em concordância.

 

Só nos resta a coisa dita, a coisa falada. Só nos resta o conceito que é a própria coisa.

 

Mas nossa geografia de nascimento nos determina a acreditar, não que a palavra seja palavra, mas sim, que ela diga sobre a “coisa” e que justamente por isso, a coisa existe para além da palavra, que apenas a representa. E assim caminha o humano ocidental acreditando ser o que diz ser, ou o que disseram que ele é. Acreditando inclusive que há algo que não seja simplesmente palavra.

 

Como não há escapatória, seguimos exilados nessa ordem simbólica da linguagem que ordena os sentidos, organiza as relações, e que é imperativa em suas formas mas inconsciente em sua estrutura. Até podemos lê-las no que Levis-Strauss chamou de estruturas elementares de parentesco e até identificar nossa participação particular em seus efeitos, naquilo que o complexo de Édipo marca subjetivamente. Mas a lógica subjetiva que orienta os efeitos dessa estrutura, nos permanece inconsciente, nos dando a falsa crença na liberdade das escolhas dentro destas complexas alianças sob cuja lei vivemos.

 

Mas que escolha há, se somos o ditos do Outro?

 

Aqui cito Lacan

 

Os símbolos efetivamente envolvem a vida do homem numa rede tão total que conjugam, antes que ele venha ao mundo, aqueles que irão gerá-lo "em carne e osso"; trazem em seu nascimento, com os dons dos astros, senão com os dons das fadas, o traçado de seu destino; fornecem as palavras que farão dele um fiel ou um renegado, a lei dos atos que o seguirão até ali onde ele ainda não está e para-além de sua própria morte; e, através deles, seu fim encontra sentido no juízo final, onde o verbo absolve seu ser ou o condena - a menos que ele atinja a realização subjetiva do ser-para-a-morte.

 

Penso que num único parágrafo, Lacan nos apresenta o destino entranhado na ordem simbólica, encarnada no grande Outro da linguagem, que vem a determinar o que será o humano, ao mesmo tempo que nos apresenta a expressão ”a menos que” marcando a ênfase no que considero crucial para a nossa clínica: uma “realização subjetiva do ser-para-a-morte”. Essa marcação me parece cair como uma alternativa a esse destino linguageiro.

 

Ora, ser para a morte não seria o despertar para o campo de uma falta fundamental?

 

Falta essa que está dada na própria linguagem?

 

Volto ao paradoxo do ovo-galinha para agora pensá-lo sob outra perspectiva, retorcendo talvez um pouco a pergunta.

Se é a linguagem que nos determina seria a própria linguagem que nos libertaria?

 

Nos libertaria naquilo que há de mais fundamental em si, na falta?

 

Não sei precisar a exatidão dessa questão, mas quando leio Lacan dizer “Servidão e grandeza em que se aniquilaria o vivente, se o desejo não preservasse seu papel nas interferências e nas pulsações que fazem convergir para ele os ciclos da linguagem….” é no próprio desejo ou seja, na falta em si, que penso encontrar a saída determinada pelo dito do grande outro.

 

Lacan afirma que esse próprio desejo, para ser satisfeito no homem, exige ser reconhecido, pelo acordo da fala. E é no advento do sujeito, que esse desejo se faz reconhecer.

 

Concluo então seguindo a linha dos paradoxos com mais uma pergunta: É no dito então que “desdizemos” o que foi dito?

 

Dito por quem?

Pelo sujeito?

A loucura do homem moderno

Patrícia Mezzomo

Seria o homem moderno louco? Qual a causa dessa loucura? Quais caminhos resolutivos a psicanálise pode nos ofertar? Em que se apoia a psicanálise nesta proposta resolutiva?

  

À medida que avançamos na proposta de Lacan, encontramos como único caminho possível, a via da formalização científica para estabelecer nossas bases teóricas e consequentemente clínicas.

 

É intrigante que justamente a era moderna, que traz consigo a queda do poder de Deus e o surgimento de um novo homem, traga também, a reboque, o seu enlouquecer.

 

E mais atordoante ainda é pensar que a psicanálise, ao se desviar da ciência, seguindo a direção de uma tópica do ego, também estivesse contribuindo com tal enlouquecimento humano. Não à toa vemos a atualidade povoada de “freudianismos” alucinatórios explicando o sofrimento humano.

 

Mas afinal o que enlouquece o homem moderno e que tipo de enlouquecimento estamos nos referindo?

 

Longe de arriscar uma resposta definitiva, faço minha aposta nas pistas encontradas no texto, que Lacan nos apresenta: “a formação singular de um delírio que objetiva o sujeito em uma linguagem sem dialética”, “estereotipias de um discurso em que o sujeito é mais falado do que fala”.

 

“O homem moderno adquire sua forma no impasse dialético da bela alma que não reconhece a própria razão do seu ser na desordem que ela denuncia no mundo. Lacan está sustentando que o homem moderno é louco, já que a bela alma é louca! Mas ele também nos dá uma saída como resolução do impasse em que delira o discurso desse sujeito (louco): “a comunicação pode se estabelecer na obra comum da ciência e nas utilizações que ela ordena na civilização universal, permitindo-lhe esquecer sua subjetividade”. Seria a ciência a solução para o enlouquecimento metafísico, discurso da subjetividade? Penso que a formalização científica tem função de barramento ao infinito enlouquecido do pensamento. Talvez Badiou nos apresente melhor esta proposta, em seu livro, o ser e o evento, ao nos afirmar logo de início que “o tempo do pensamento está aberto para um regime de apreensão diferente, encerrando a idade metafísica. Essa abertura trata de um retorno com Heidegger, uma e com a matemático-lógica de Frege-Cantor. A saída então é ciêntifica, porém não qualquer ciência.

 

O homem moderno matou seu deus, mas não morreu com isso a necessidade de manter suas garantias que outrora vinham da palavra divina. Coube então ao novo discurso, fazer suplência a essa garantia. Não à toa tenha se assujeitado as ciências positivistas, que se baseiam na ideia de que o conhecimento científico é o único verdadeiro. Não consigo ver nada mais religioso.

 

Isso marca possivelmente a grande questão humana, o vazio, o negativo. Não é possível que não tenhamos um guia, um norte, um deus ou uma ciência positivista que preencha tudo e nos dê garantias e certezas! As crenças se alteram mas o homem segue o mesmo, assujeitado por um Outro que lhe traga garantias.

 

Por analogia, não acho tão difícil pensar esse caminho dentro da psicanálise, ao optar-se pelo ego e não pela linguagem. Tão tentadora a proposta de um ego forte em detrimento de um furo linguageiro não é mesmo!

 

Pois bem, voltando a Lacan, podemos então pensar que quando ele nos dá a sentença do enlouquecido, nos dizendo: “aquele que é falado em uma linguagem sem dialética”, temos aí o sujeito religioso da ciência positivista. Algo único e total, que não se propõe a debates e se assujeita a tal. Seria o divã nosso instrumento de exorcismo dessa totalidade discursiva, apontando que o destino de qualquer análise é o encontro com a contradição de sua fala, denunciando ali a divisão subjetiva que ele tanto teme?

 

Na página 283 do seu texto - Função e campo da fala e da linguagem - quando Lacan nos explica, no uso corrente, a inversão do “isso sou” para o “eu sou”, além de apontar a substituição do “isso” pelo “eu”, ele ainda nos diz: “da época de Villon”. Villon, foi um poeta ladrão e boêmio, considerado o precursor dos poetas malditos. Fui à pesquisa: Os poetas malditos do Romantismo são aqueles que se opunham aos valores da sociedade, tinham um comportamento provocativo e morriam antes de serem reconhecidos. Se opunham, diz o Google.

 

Gosto de pensar que o tempo todo, Lacan inverte e se opõe a tudo. Inverte para que possamos sair da loucura moderna, de um homem inseguro de suas perdas que tenta reavê-las, à custa de seu próprio saber sobre a verdade, e nos propõe uma outra ciência, a ciência do negativo, a ciência da formalização, da linguística e também a ciência matemática que Badiou nos cita mais acima.

 

“A psicanálise desempenhou um papel na direção da subjetividade moderna e não pode sustentá-lo sem ordená-lo pelo movimento que na ciência o elucida. É esse o problema dos fundamentos que devem assegurar à nossa disciplina seu lugar nas ciências.”

O sujeito da ciência lacaniana

Patrícia Mezzomo

Existe em toda cultura um mal estar oriundo dos efeitos da linguagem e do significante. Esse mal estar sofre suas modificações segundo as mudanças culturais do discurso de uma época. A sociedade ocidental moderna caracteriza-se como sociedade científica. A presença da ciência e seus efeitos são determinantes fundamentais e o sujeito de uma sociedade assim definida, será, consequentemente, sujeito da ciência.

 

Então se o sujeito é sujeito da ciência - pelo menos em nossa época - podemos  então pensar que a ciência produz o sujeito. O que nos leva a pergunta: que tipo de sujeito?

 

E qual o papel da psicanálise nesse sujeito? Eidelsztein, em seu livro, as estruturas clínicas a partir de Lacan, argumenta que a psicanálise é uma resposta ao mal estar do sujeito da ciência, nos levando a raciocinar que a psicanálise opera com um sujeito que é efeito da ciência moderna ocidental.

 

Mas nesse ponto precisamos nos ater à articulação, sujeito-ciência, pois tenho a impressão que é nesse nó que encontramos o desenlace Freud-Lacan. A ruptura científica dos desbravadores do inconsciente e do vazio.

 

Freud subverteu o mundo com seu inconsciente, mas como as ciências suportes para sua teorização, mal tinham avançado um passo além da idade média, e pela denúncia de Lacan, me parece até terem regredido, no que se refere a linguagem e formalizações, não foi possível ao vienense produzir o sujeito da ciência da psicanálise, já que suas ciências produziam o eu.

 

Aqui cito Lacan para partir a favor do argumento de que não é possível um sujeito sem formalização e acredito que é disso que se trata a ruptura lacaniana, mesmo que ainda em 1953, ele ainda não a tivesse formulado. No final da página 289, do texto, Função e campo da fala e da linguagem, Lacan escreve, a respeito do início da psicanálise: “Privada como estas - artes liberais da idade média - de uma verdadeira formalização, ela - a psicanálise - se organizaria à semelhança delas, num corpo de problemas privilegiados, cada qual promovido por uma relação fortuita do homem com sua própria medida…” O que encontramos nesse trecho talvez seja a afirmação de que sem a formalização, o que vemos à nossa frente é a nossa própria medida, ou seja, o eu. Repito: sem formalização não é possível o sujeito, apenas o eu.

 

Volto ao raciocínio de que o desenlace de Lacan com Freud se dá na ruptura, no corte significante que mata o eu e produz o sujeito, que mata a ciência biologicista e produz uma psicanálise articulada à ciência matemática.

 

Com sua descoberta, Freud restitui a verdade, trazendo-a para o campo da psicanálise. Porém, a verdade pede um tipo específico de ciência para que ela não se torne uma certeza. É preciso ir de encontro às ciências que não assentam-se em afirmações, mas sim em formulações. Para isso, Lacan não opõe ciências exatas às ciências da conjecturas e nos diz: “a exatidão se distingue da verdade e a conjectura não impede seu rigor”. O que temos aqui? Uma necessidade de não nos fiarmos em certezas, pois elas impedem a verdade, mas também, não ficarmos entregues às nossas próprias medidas, pois há de haver um rigor naquilo que nos propomos a investigar e a conceitualizar. E é nesse ponto em que a matemática nos serve, pois ela nos ajuda a pensar que o sujeito da ciência moderna, portanto o sujeito de nossa época, é formulado no vazio.

 

É interessante, ao retornamos do ponto em que nos encontramos, e verificar o conflito em que se encontrava a psicanálise do nosso francês. De um lado o vemos ainda tentando se encaixar na teoria de Freud, propondo a poética heideggeriana como uma das novas ciências e do outro afirmando que nosso símbolo é matemático. “Está claro que nossa física é apenas uma fabricação mental cujo instrumento é o símbolo matemático” diz Lacan em 1953

 

 

Como a arte imita a vida, ou a teoria imita a vida, é no divã que aprendemos a perder para existir enquanto vazio. Talvez Lacan também tenha encontrado seu objeto a no fracasso do prestígio tão almejado ainda em 1953. Finalizo então com a pergunta: Só foi possível o sujeito da “ciência lacaniana”, com a produção do próprio sujeito Lacan?

A análise das resistências leva ao desconhecimento do sujeito

Patrícia Mezzomo

Tentar encaixar a psicanálise no inefável causa um desvio escandaloso da nossa técnica. É dessa forma que adentramos o subcapítulo do texto Função e campo da fala e da linguagem, sob o título: As ressonâncias da interpretação e o tempo do sujeito na técnica psicanalítica, nos Escritos de Lacan.

 

Desvios que todos se sentem autorizados a praticar incessantemente, e que Lacan sem descanso nos aponta, a saber, o sujeito não é ontológico e não há substância.

 

É dessa maneira que ele segue sempre nos guiando em suas denúncias de tais desvios, colocando agora uma lupa, na análise das resistências, como mola propulsora do desvio freudiano: A análise da resistência leva ao desconhecimento do sujeito pois leva a substancialização daquilo que falta. Interpretar é dar sentido ao vazio, é dar consistência imaginária ao que se apresenta como real no discurso do sujeito.

 

Freud já sabia. Ele não analisa a resistência, ele deixa que a mesma faça parte do jogo simbólico do sujeito. Do analisando e não do analista. Mas pelo jeito, apenas ele sabia. E sabia tanto, que se usa da resistência, sem lhe conferir sentido, justamente para que ela cumpra sua função, que é a de implicar o sujeito em seu discurso e jamais servir ao tamponamento da angústia do analista. O sujeito deve superar suas resistências e essas jamais devem servir ao analista.

 

Para aquele que se crê douto, Freud em sua posição de analista, lhe parece vulgar, pois lhe é vulgar tudo o que não se assemelha ao discurso do mestre. E ele vulgariza Freud, desviando-se de seu princípio. Princípio que nos indica que só se atinge autenticamente o sujeito ao descentrá-lo da consciência de si. É somente descentralizando o sujeito de si, que o mesmo é atingido. Atingido, não definido, muito menos interpretado.

 

O sujeito da psicanálise é fugidio, esvaziado e “impresentificável”. Apresenta-se somente na divisão. Não é indivíduo, é dividido. A estrutura é a divisão, que gera a identidade e desarticula o sujeito. E a psicanálise tem por objetivo descentralizar o sujeito desta identidade.

 

E foi justamente esse sujeito que foi esquecido pelos próprios psicanalistas, no desvio para novas tendências que trazem as “boas novas”: sua majestade o Eu. Indivíduo completo, consistente, ileso da angústia estrutural que a linguagem nos arremessa e que pode encarnar a linguagem universal denunciada por Hegel em sua lógica do senhor-escravo, que mais me parecem uma lógica escravo-escravo, ambos agrilhoados ao discurso aprisionante de mestre.

 

Lacan nos diz que para liberar a fala do sujeito, é preciso introduzi-lo na linguagem de seu desejo. Só o desejo é capaz de liberar o sujeito da lógica senhor-escravo, concedendo-lhe a soberana liberdade de Humpty-Dumpty. Como não sei nada a respeito de liberdade (ou seria de desejo?) encerro me questionando que tipo de liberdade um ovo antropomórfico, com rosto, braços e pernas, em cima do muro, teria alcançado? Seria a liberdade de não ser um ser-humano? Ou somente a liberdade de não ser?

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