Grupo Desambiguando Lacan de Freud
Por que desambiguar?
Evitar equívocos: A sobreposição de conceitos e a interpretação literal de Lacan como um simples continuador de Freud podem levar a equívocos na compreensão de ambas as teorias.
Aprofundar a compreensão: Ao distinguir as especificidades de cada autor, podemos aprofundar nossa compreensão tanto da obra de Freud quanto da de Lacan.
Avançar na clínica: Uma leitura mais precisa das teorias permite uma prática clínica mais eficaz.
Índice de Textos
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Em defesa da psicanálise - estruturalismo - Patrícia Mezzomo
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Lacan - A revolução negada - Resumo - Isso, Eu e Supereu X RSI - Pedro Paschuetto
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Lacan - A revolução negada - Resumo - Metáfora Paterna x Complexo de Édipo - Pedro Paschuetto
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Lacan - A revolução negada - Resumo - Narcisismo x Estádio do Espelho - Pedro Paschuetto
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Lacan - A revolução negada - Resumo - Neurose em Freud e Lacan - Pedro Paschuetto
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Lacan - A revolução negada - Resumo - Representação x Significante - Pedro Paschuetto
A 2ª TÓPICA E OS 3 DE LACAN*
Josiane Tibursky
A autora1 inicia seu texto nos relembrando da motivação que nos mantém empenhados na desambiguação entre Freud e Lacan: a própria clínica, mas isso significa dizer que o que está em jogo é nada mais nada menos que o próprio futuro da psicanálise. A psicanálise foi inventada enquanto clínica e o direcionamento do tratamento clínico tem por base, claro, o arcabouço teórico da psicanálise e, como sabemos, nossa posição teórica traz consequências para o resultado clínico. Sabendo que o que tem mantido a psicanálise de pé são justamente os resultados clínicos, eles enfraquecendo, a psicanálise corre o risco de ruir.
Lacan se diz freudiano quando nem mesmo Freud se mantém freudiano, e o que está em jogo aqui é a noção de inconsciente, apagada pela própria letra de Freud ao fazer sua elaboração teórica do sofrimento neurótico.
Lacan propõe o paradigma dos 3 registros para substituir a 2ª tópica de Freud, o que implica uma estrutura nova, tanto no que toca os elementos que a constituem como no que se refere às leis que os compõem. E essa novidade proposta por Lacan incide não apenas sobre o que foi proposto por Freud, mas também sobre o que o senso comum da nossa época e sociedade estabelece como imaginário, simbólico e real. No entanto, os discípulos de Freud tomam os 3 de Lacan como continuidade dos 3 de Freud, tratando imaginário, simbólico e real como uma nomenclatura nova para eu, supereu e isso. Mas as bases conceituais que sustentam as propostas de Freud e de Lacan são radicalmente distintas e, portanto, incomensuráveis.
Revisitemos a 2ª tópica. Já no primeiro capítulo do livro O Eu e o Isso (1923), Freud introduz o problema acerca do conceito de supereu, “afirmando que a premissa básica da psicanálise é a diferenciação entre o psíquico consciente e o inconsciente. Isso representa sua tópica, sua teoria espacial para pensar o psíquico”.2
Freud define o conceito de Eu como
a organização coerente dos processos anímicos em uma pessoa. Do Eu, depende a consciência, o acesso à motilidade, a descarga de excitações e o controle de seus processos parciais e a censura durante o sono. Do Eu partem os recalques a partir dos quais algumas aspirações anímicas ficam excluídas da consciência.2
A novidade então é que parte do Eu pode ser inconsciente. Com isso, os fenômenos da resistência em análise passam a ser um problema. A interpretação de Freud é a de que há uma parte do Eu que é inconsciente, de onde provém essa resistência, e que se comporta como o recalcado. Tais fenômenos o forçam a reformular seu conceito de inconsciente
.
Freud propõe um novo esquema do aparelho psíquico, com o Eu representando a razão e a prudência sobre as paixões do Isso. Para Freud, o Isso é inconsciente e interior, ao passo que o Eu é alterado pelo mundo exterior. No final do capítulo, Freud explica que, a partir da existência de sentimentos inconscientes de culpa, viu-se diante da necessidade de introduzir o novo conceito do Supereu.
O pai da psicanálise defende que a origem do Ideal do Eu está ligada a uma identificação primeira, direta e imediata, com o pai, a qual relaciona ao Complexo de Édipo. Como sabemos, Freud pensa esse complexo em função de processos biológicos que ocorrem com indivíduos, de desamparo e dependência, e não, como Lacan, com base no discurso, e, por isso, se depara com muitas dificuldades teóricas para explicar a diferença do que ocorre entre homens e mulheres.
Para Freud, o Supereu é o depositário de todos os mandatos e proibições de autoridade e mestres, onde permanecem vigentes, exercendo a censura moral. A tensão decorrente entre a censura moral e o Eu dá surgimento ao sentimento de culpa. Logo, os conflitos que originalmente ocorriam entre os investimentos do Isso e do Eu continuarão ocorrendo a partir do Supereu, que é, em grande medida, inconsciente e inacessível ao Eu.
Agora Freud está diante de um novo e maior problema, o de como integrar sua teoria anterior das pulsões à nova proposta de aparelho psíquico. Com isso, propõe um argumento fraco, o de que o Eu e o Isso estão submetidos igualmente à ação de duas pulsões: de vida (sexuais/da libido) e de morte, sendo a pulsão uma força biológica.
Freud então propõe que grande parte do sentimento de culpa é inconsciente, já que a consciência moral provém do Complexo de Édipo, que é inconsciente. Daí decorre que o sentimento de culpa é universal em todos os indivíduos. O Eu, conforme proposto, sofreria ameaças de três perigos e angústias: do mundo exterior, da libido do Isso e da severidade do Supereu. No final, Freud descreve uma função positiva do Supereu: protetora e salvadora, que primeiro era do pai.
Tendo isso em vista, vemos que o convite de passar do paradigma freudiano para o lacaniano nos impõe, então, passar do Supereu como instância psíquica, interior ao indivíduo, herdeiro do Complexo de Édipo, internalização da voz dos pais, imperativo categórico, ao Supereu como imperativo sobre mim, uma das formas do Isso fala na teoria de Lacan, cuja materialidade é simbólica.
Com isso, defendo aqui, em conformidade com a opinião da autora do artigo, que os 3 de Lacan não são, de forma alguma, uma nova nomenclatura para a 2ª tópica de Freud, assim como também não se deve pensar que há qualquer tipo de hierarquia entre eles. O ensino de Lacan não segue um percurso linear, segundo o qual o imaginário seria substituído pelo simbólico, que seria, por sua vez, substituído pelo real. Os 3 registros se enodam sem que haja preponderância de um sobre os outros dois.
A lógica que dá conta da estrutura própria e específica dos 3 registros é o nó borromeano, que nos permite perceber que cada um dos três só existe em relação com os outros dois. Aqui fica claro que, para Lacan, o ser reside e consiste apenas na relação. A relação, que será também posta por Lacan como “laço” (bucle), estabelece todo elo entre os falasseres e, especialmente, à própria psicanálise, que, segundo Lacan é um discurso e também um tipo de laço social. O valor do laço, que é em que consiste todo discurso, é tal que faz Lacan afirmar que “não há realidade pré-discursiva”.
Cito Eidelsztein:
Estritamente falando, o ser da cadeia com a qual Lacan opera reside apenas na relação entre os elos desta e ignora o material, corda, ferro etc., com que estes últimos estariam feitos e cuja referência somente constitui uma ancoragem para a imaginação. Para Lacan, os elos são superfícies tóricas e, como tais, superfícies topológicas bidimensionais e intangíveis.
No sistema de Freud, cada elemento é em si mesmo de forma independente, embora deva suportar as incidências dos outros, como acontece com o eu que é vassalo do Supereu, do Isso e da realidade. Para Freud, o indivíduo na sociedade também funciona da mesma forma. Para Lacan, trata-se de postar em forma significante todo ente ou elemento a considerar em psicanálise, especialmente o sujeito, uma vez que o significante é, fundamentalmente, o que é em relação.
Do que se trata, no fundamento de sua teoria, é da concepção estritamente lacaniana do significante. Toda sua proposta filosófica, consistente em seu móterialisme, o materialismo da palavra, implica sustentar: o parlêtre, que deve ser traduzido como falasser — e não “ser falante” —; a hontologie — vergontologia, ou a vergonha de sustentar que “o ser é e o não-ser não é” — e a insubstância, ou rejeição de nossa ideologia reificante e coisificadora. Essa filosofia, verdadeira antifilosofia, como foi dito, se sustenta inteiramente em sua teoria do significante.3
O simbólico é então o registro que enoda os outros 2, tendo ele próprio a função de nó, a partir, justamente, da operatória significante, posto que cada significante só existe na relação com outro significante: S2 que retroage sobre S1, fundando assim um tempo reversivo e um espaço combinatório circular, formando uma relação significante em forma de bucle ou de linha cerrada. Na cadeia significante, S1 antecipa S2, que retroage sobre S1 e o ressignifica. Os três registros só existem enodados, encadeados, a partir da possibilidade que o simbólico do furo fornece, causado pelo significante em sua operação.
O nó borromeano é, segundo Lacan afirma no Seminário 22,4 uma escritura que suporta um real. Mas esse real não é relativo ao natural, à natureza, ele é relativo à demonstração lógica ou matemática, tem a ver com o impossível lógico, que, embora impossível, pode ser notado a partir de uma regra, não estando, ele próprio, fora do simbólico. É a própria “definição ou regra que determina a impossibilidade”,1 ou, dito de outra forma: “o real é o que do simbólico se enuncia como impossível”.5
Para Lacan, o que causa a existência é o simbólico. Partindo do simbólico, sincronicamente, do real fazem-se re-cortes, a cada ranhura6 feita a cada sessão, diacronicamente, sessão após sessão, fundando, concomitantemente, um novo discurso e um novo real. Portanto, o real muda de acordo com o discurso que está sendo pronunciado. Na lógica do bucle significante, a existência (descentrada) é possível pelo enlace do conjunto de encadeamentos, como vemos na linha fechada de Jordan, a partir do qual vai se forjando um outro modo de ser, mas que carece de identidade, substancialidade, posto que é vacuidade. A linha fechada é um lugar bidimensional onde existem e são criados o sujeito, o outro e o objeto a. No meio, o furo, que Eidelsztein chama de “ciclone devorante”,3 é uma propriedade da estrutura.
Com isso em mente, relembrando que a manutenção da psicanálise jaz em seus resultados clínicos, fica evidente que as conduções das análises serão completamente distintas dependendo da interpretação teórica adotada. Resta, portanto, a dúvida do quão longe se consegue ir e de quais benefícios se consegue colher a partir de uma ideia de um Eu pessoal, interno, individual, em conflito com forças internas e externas —seriam os fins de análise de tais propostas igualáveis?
* Texto para a seção teórica de 22/05/2024 sobre o Capítulo Isso, eu e o supereu x RSI, de autoria de Karime Colares.
Referências
1 COLARES, Karime. “Isso, eu e o supereu x RSI.” In: DUTRA e colaboradores. Lacan: a revolução negada. Editora RCV. Curitiba, 2021.
2 SCIUTTO, Karina Rodriguez. O conceito de supereu e a mudança de paradigma: de Freud a Lacan. In: DUTRA e colaboradores. Lacan: a revolução negada. Editora RCV. Curitiba, 2021.
3 EIDELSZTEIN, Alfredo. O simbólico de J. Lacan, ou a função do furo.
4 LACAN, Jacques. O seminário, Livro 22: R.S.I. Apud COLARES, Karime “Isso, eu e o supereu x RSI.” In: DUTRA e colaboradores. Lacan: a revolução negada. Editora RCV. Curitiba, 2021.
5 LACAN, Jacques. O seminário, Livro 17: o avesso da psicanálise. Apud COLARES, Karime Isso, eu e o supereu x RSI.” In: DUTRA e colaboradores. Lacan: a revolução negada. Editora RCV. Curitiba, 2021.
6 Fazer ranhuras no real, termo de Barbara Cassin.
Em defesa da psicanálise - estruturalismo
Patrícia Mezzomo
"No fundo, é só de linguagem que se trata meu ensino."
Jacques Lacan
Seminário 20
Mais, ainda
Entender que é da linguagem que se trata a psicanálise, nos nossos tempos, parece um tanto quanto óbvio, pelo menos assim esperamos. Mas se olharmos a trajetória percorrida por Lacan, em defesa de uma psicanálise da linguagem, talvez percebamos o quão importante é dizer o óbvio e mais ainda, lutar por ele.
Ao ler o texto da historiadora Elisabeth Roudinesco, intitulado Lacan, a peste, nos deparamos com um Lacan se equilibrando nas políticas internas para manter-se dentro da sociedade psicanalítica.
Nessa época, no seio da SFP, ele é efetivamente um guru, mas um guru sem comando, obrigado a difundir seu ensino sob a governança de um sistema político que ele não respeita. É obrigado a usar de astúcia, não nomear seus adversários, atacá-los sem dar na vista, subverter os quadros de um grupo ao mesmo tempo em que finge respeitar suas regras.
Aponta seus inimigos sem nomeá-los, enquanto nomeia sempre seus amigos. Ameaça seus inimigos, mas para isso exerce o fingimento, a mentira, o não dito, correndo o risco de ser flagrado corrompendo uma geração psicanalítica, que ele torna rebelde à ordem freudiana do momento com uma profusão de referências a autores vindos de fora do campo da psicanálise.
Ele ainda precisará de muitos anos e de uma verdadeira rejeição por parte da IPA para sair dessa ambiguidade na qual se instalara, mas durante todo esse período, o que ocorre é uma grande batalha no seio dessa mesma sociedade psicanalítica.
Seu desejo de dar uma orientação mais intelectual à reflexão freudiana o impulsiona para fora da SFP e o atira diretamente no estudo dos grandes intelectuais contemporâneos.
Linguística e estruturalismo passam então a ser seu grande arsenal e é aí que ele estabelece as bases de sua psicanálise da linguagem.
O estruturalismo se apresentou como um método rigoroso que podia trazer esperanças a respeito de certos progressos decisivos no rumo da ciência.
Uma verdadeira estratégia inconsciente de superação do academicismo no poder se consubstanciou então num programa estruturalista, que teve uma dupla função - de contestação e contracultura. Podemos ver isso acontecendo no estruturalismo e podemos ver o mesmo com Lacan e a psicanálise da segunda e terceira geração freudiana.
É também o momento em que a linguística desempenha a função de ciência-piloto que orienta os passos da aquisição científica para as ciências sociais em geral. O estruturalismo terá sido, nesse plano, o estandarte dos modernos em sua luta contra os antigos.
O momento estruturalista inaugurou um período particularmente fecundo da investigação nos domínios das ciências humanas. Derivado de estrutura, o termo teve inicialmente um sentido arquitetural, para depois modificar seu sentido, ampliando-se por analogia aos seres vivos e posteriormente assume então o sentido da descrição da maneira como as partes integrantes de um ser concreto se organizam numa totalidade.
A estrutura dá então origem ao neologismo estruturalismo e seu verdadeiro ponto de partida do método em sua acepção moderna, na escala de todas as ciências humanas, provém da evolução linguística. E a partir desse núcleo linguístico, o termo provocará uma verdadeira revolução de todas as ciências humanas em pleno século XX.
Foi nele, que a psicanálise lacaniana pôde encontrar o meio que lhe permitiu se apoiar em um modelo científico e é esse próprio modelo que aponta um novo olhar sobre o outro, sobre a diferença, sobre a forma como esses processos são moldados pela linguagem e pelas estruturas simbólicas da cultura.
O estruturalismo trás um certo número de descobertas que faz parte de um saber incontornável no conhecimento do homem.
Lacan - A revolução negada
Resumo - Inconsciente Freudiano X Inconsciente Lacaniano
Pedro Paschuetto
Narciso ia cantarolando alegre, feliz e saltitante com seus 4 balões pelo parque do ego da sociedade ocidental. No entanto no século XVI, Nicolau Copérnico publicou a teoria do heliocentrismo invalidando a do geocentrismo, tirando o planeta Terra do centro e colocando o Sol como unidade centralizadora onde os planetas orbitavam ao seu redor, assim sendo, tirava do umbigo do homem que sua morada era o centro. Este vilão cruel e impiedoso dito homem da ciência estourava um dos balões de Narciso, cujo eram inflados com oxigênio dos dogmas teológicos vulgo cristãos. A seguir, Charles Darwin já no século XIX com suas teorias postuladas em “A evolução das espécies”, trazia que o reino humano advém basicamente de uma adaptação de seus ancestrais comuns com os primatas, novamente a ciência subvertendo os conceitos de que o ser humano parte de uma criação divina por um ser superior - mais um balão estourado. Freud através da Psicanálise revela que o ser humano não tinha tanto o poder e domínio de si quanto achava que tinha, postulando que este ente era regido por uma força muito mais poderosa que uma mera escolha consciente: a força do inconsciente. Fica o recado: “ser humaninho, tira seu cavalinho da chuva pois o domínio que você pensava ter sobre emoções, pensamentos e por consequência escolhas, não é tão grande quanto você achava”. Essa seria a terceira ferida narcísica, o terceiro balão estourado.
Freud trouxe conceitos acerca do aparelho psíquico que constituía a noção de sujeito, pessoa e indivíduo, que funciona segundo o modelo do arco reflexo numa articulação entre 3 aspectos: o tópico - lugar onde acontecem os fenômenos; o dinâmico - conflito de forças entre os sistemas; o econômico - investimentos de energia que circulam dentro do aparelho psíquico. A concepção do aparelho psíquico é distinta nas duas tópicas do desenvolvimento teórico de Freud, definido na primeira tópica pelos sistemas do Inconsciente, Pré-consciente e Consciente e na segunda pelas instâncias do Isso, Eu e Supereu.
O Isso (inconsciente) sendo uma fonte de conteúdos reprimidos e recalcados na fases do desenvolvimento do aparelho psíquico da pessoa, conteúdos esses que não tiveram alcançado suas satisfações plenas ou que seriam insuportáveis pela descarga total da libido representante das pulsões. O Eu, uma criação originária do Isso onde era balizada e norteada pela influência do mundo externo. O Isso, por sua vez, correspondendo a um continente fechado que abarca uma série de coisas, feito um caldeirão cheio de conteúdos relativos àquele indivíduo.
Agora veremos um pouco de como Lacan se refere ao Inconsciente, lembrando que para ele o Inconsciente trata-se de um conceito, forjado sobre o rastro do que opera para constituir um sujeito, logo, o que opera para constituir o sujeito é o significante em seu funcionamento dinâmico - no momento que S1 significa algo para S2, retornando e dando sentido à S1, aí está o sujeito.
Estando o Inconsciente estruturado como uma linguagem sendo desvelado pela experiência psicanalítica, essa estrutura de linguagem já existe de tempos imemoráveis, o Outro já está dado de saída, a mãe/pai/cuidadora apenas transmite essa estrutura de linguagem à criança, a criança apenas é inserida nesta estrutura vigente, logo, essa estrutura do Inconsciente não se constitui gradualmente, não se desenvolve, onde os elementos dessa estrutura são os significantes. Com isso perde-se a noção do sujeito Freudiano criado por um psiquismo particular com propriedades individuais, pessoais, subvertendo o conceito de indivíduo, ser, unidade, perdendo seu estatuto ôntico - daquilo que é próprio do ser. Uma analogia à esta adesão da criança na linguagem é pensar no ar que se respira: nasceu, já estará respirando o mesmo ar que todos, já estará assujeitada pela mesma qualidade do ar que todos respiram, se inapropriada, regular ou boa.
Este princípio revoga a ideia de separação e particularidade de cada pessoa, de cada fala-ser. O que agora é particular? O que agora é meu? O que agora é do outro?
Será que Lacan não evoca uma quarta ferida narcísica, agora estourando o 4º balão que Narciso carregava alegre, feliz e saltitante pelo parque do ego da sociedade ocidental?
Uma história:
Certo dia um mestre zen passava próximo ao castelo do rei. O rei, por ser um estudioso e erudito, resolveu aproveitar a oportunidade e fazer uma pergunta ao mestre:
- Mestre, o que é o Ego?
Eis que o mestre responde:
- Ora! Veja esta carruagem que me transporta. As rodas que movimentam a carruagem são a carruagem?
- Não.
- Os cavalos que tracionam a carruagem são a carruagem?
- Não.
- Os assentos que suportam os viajantes da carruagem são a carruagem?
- Não.
- A estrutura que molda a carruagem é a carruagem?
- Não.
- Muito bem! Então como você quer que eu responda o que é o Ego?
Eis que o mestre fez uma reverência e seguiu viagem.
Lacan - A revolução negada
Resumo - Isso, Eu e Supereu X RSI
Pedro Paschuetto
Por Karime Colares - APOLa Brasília
Introdução
De que se serve ficar masturbando diferenças teóricas entre as teorias de Freud e Lacan? Uma ótima razão pela qual sustenta a invenção da psicanálise é a própria clínica, a lida com o sofrimento. É de suma importância escolher por qual sistema se escuta uma fala, pois isso implica em consequências na forma pela qual um tratamento é operado e
na maneira de intervir em sintomas do analisante.
É indispensável advertir no que tange aos efeitos terapêuticos a atenção da(o) analista quanto a isso.
Alfredo Eidelsztein em seu livro sobre a Topologia faz um alerta sobre este ponto: da importância, contribuição e aplicabilidade da topologia não para sofisticar a teoria e empinar o nariz da intelectualidade nos círculos psicanalíticos, mas sim com propósito de operar o processo terapêutico e clínico a fim da produção de efeitos mais radicais em suas curas.
* Tá, e aí? Tá ajudando clinicamente? Os sintomas da galera? Ou só no campo teórico intelectual?
"Meus Três"
Em 12 de julho de 1980 na apresentação conhecida como "conferência de Caracas", sendo um dos efeitos da Carta de Dissolução da École Freudienne de Paris escrita por Lacan, ele sustenta que os "seus três" - real, simbólico e imaginário - teriam sido dados para que os analistas possam se orientar melhor na prática clínica.
Lacan também critica a segunda tópica freudiana argumentando conceitos insipientes, mal feitos, mas sendo o que estava ao alcance de Freud na época. Em suas palavras: "Digamos que não é o que Freud fez de melhor."
A aproximação entre Isso, Eu e Supereu com RSI, faz a gente pensar o quanto esses conceitos são importantes para os autores, pois articulam desde suas investigações iniciais perpassando toda a construção teórica de cada um.
As diferenças entre os três de cada autor são radicais. O Eu para Freud é interno, central, particular, base narcisista de todo amor objetal, tendo como base traços mnêmicos da vivência de satisfações no começo da vida, fundando o "mundo interno". Para Lacan, o eu é um ineliminável engano a respeito da confusão entre eu e o outro, não tendo nada de particular, individual, próprio e interno, sendo algo que surge enquanto se tenta dar um sentido na retroação da cadeia significante, sendo base da alienação imaginária constituída pela imagem do espelho, sendo uma ideia de si dada pelo Outro da linguagem.
Outra diferença considerável: o Isso freudiano é a fonte das pulsões que provêm do interior do corpo biológico, já o Isso de Lacan tem função de escrever que "Isso fala" e "Isso pensa", estabelecendo a lógica do impessoal onde o pensamento e a fala não corresponde à lógica individualista.
Isso, Eu e Supereu
Acerca do aparelho psíquico freudiano, ele não é uma tentativa de explicação do funcionamento em bases anatômicas, mas pelo contrário, implica numa renúncia à anatomia e a formulação de uma metapsicologia, um modelo hipotético e fictício de seu funcionamento.
O Eu que surge na teoria é tratado como uma organização dentro desse aparelho que, por sua vez, é fruto de uma exigência econômica de energia vinculado à uma contenção do confuso fluxo da quantidade que perpassa o psiquismo desamparado.
Na dita primeira tópica - ICS, PCS, e CS -, o termo inconsciente era usado antes por Freud de forma puramente adjetiva para designar aquilo que não era consciente, mas jamais para considerar um sistema psíquico distinto dos demais e dotado de atividade própria.
Diversas contradições fizeram Freud repensar esta concepção, fundando assim a segunda tópica em 1923 com "O Eu e o ID", onde foi reformulado o conceito de Eu a partir da teoria do narcisismo, a formalização do conceito de pulsão e o conflito entre pulsão de vida x pulsão de morte, bem como a formulação de que o inconsciente não mais coincide com o recalcado, ou seja, havendo uma parte do Eu que passa a ser considerada inconsciente.
O Isso é formulado como sendo "a parte obscura, a parte inacessível de nossa personalidade", onde Freud descreve com características de: não haver contradição, ausente da ideia de tempo, desconhece julgamento de valor, de moralidade, etc.
O Eu, por sua vez, seria uma parte do Isso modificada pela proximidade e influência do mundo externo, é receptivo não só às excitações provenientes de fora, mas também àquelas que emergem do interior da mente.
O Supereu assume o poder, a função e até mesmo os métodos da instância parental, constituindo-se não simplesmente como seu sucessor, mas, também, realmente seu legítimo herdeiro. Ele observa, dirige e ameaça o Eu exatamente da mesma forma que os pais faziam com a criança.
Outra função atribuída ao Supereu é de ser veículo do "ideal do Eu", com uma exigência de perfeição que ele se esforça para cumprir.
O Eu, neste caso, serviria a três tirânicos senhores: o mundo externo, o Supereu e o Isso.
Portanto, assim como a civilização ganha do mar terra para cultivar, a psicanálise freudiana ganha do Isso, território para o Eu.
*Operar com essa ou RSI: quem tem mais tempo de análise pode dizer
RSI
Há uma forma de ler Lacan que poderíamos chamar de "evolutiva", na tentativa de reduzir seu ensino a uma sequência de fases, porém esta maneira é uma merda, não se sustenta e fica de pobre entendimento. Lacan não segue um percurso linear em sua teorização, suas idas e vindas, links, desvios e retomadas de teses mais antigas.
Essa noção de leitura linear e evolutiva coloca em perspectiva a primazia de um registro pelo outro, no entanto esta é uma forma equivocada de interpretação, pois seu percurso na teoria trata-se apenas de uma sofisticação do enodamento do RSI concebido pelo nó borromeano, de forma que não há preponderância de um registro sobre os outros.
Lacan se ocupa em definir teoricamente o papel do imaginário na constituição do Eu na experiência intitulada "estádio do espelho" onde há uma captação pela imagem, que antecipa a unidade e o controle da motricidade efetiva do corpo, até então vivido como despedaçado atribuindo-lhe uma forma. Essa antecipação do eu aliena-o a uma imagem mais ou menos fixada a algo exterior a ele, com auxílio da imagem do corpo do outro. Em suas palavras: "É no outro que o sujeito se identifica e até se experimenta a princípio".
Tratando-se do esquema óptico apresentado no Seminário 1, ele representa a primeira tentativa de Lacan conceituar a incidência sincrônica do real, do simbólico e do imaginário.
Vamos ao esquema:

Segundo Eidelsztein: As imagens, e especialmente as imagens enganosas do espelho esférico, representam o imaginário, a estrutura ilusória do eu (mãe e pai: minha filha, meu filho, Fulano, Ciclana, etc), enquanto que o aparato óptico, mais os objetos inacessíveis (as flores reais somente são acessíveis visualmente ao sujeito do experimento através da imagem ilusória, ou seja, seu reflexo), representam o real e as leis de produção de imagens, o simbólico.
Não comentarei do segundo esquema chamado "vaso invertido", pois este primeiro já dá para pensar na estrutura ilusória do eu, onde o vaso é o próprio corpo refletido no espelho junto com a visualização do corpo de outra pessoa e as flores sendo o eu imaginário, dado pelo espelho côncavo como Outro: você é isso, você é aquilo, que teimosia!, onde já se viu alguém fazer isso?, você não se preocupa comigo?, fez isso, tem que apanhar mesmo!, o filho da vizinha não faz essas coisas, você só me dá orgulho!, você só me dá tristeza!, etc.
É importante que o analista esteja advertido que se trata de um engano quanto à própria forma da pessoa enxergar seu corpo, posto que o registro imaginário é o local onde essa captura imagética está considerada. O engano é que "acreditamos que somos o nosso corpo visível" sem considerar esse registro como intermediário e distorcedor da imagem. Um esclarecimento quanto a isso pode ser dado através do que conhecemos como anorexia, por exemplo, onde a pessoa se enxerga acima do peso mesmo estando com um corpo altamente magro e desnutrido.
Disso dá pra se ter inúmeros desdobramentos quanto à busca desenfreada pela beleza corporal, estética e seus procedimentos, pois o corpo no registro imaginário estará baseado na incompletude, com suas faltas, falhas e lacunas facilitando a insatisfação que as pessoas sentem perante seu corpo.
Quanto ao registro simbólico, o falasser foi inserido nele quando foi inserido na linguagem, é uma forma matriz de tentar sobreviver e interpretar o mundo à sua volta bem como o que se sente e pensa. Por que não pensamos e sentimos por cores? Ou em sons? Desse registro é que se dará os nomes aos sentimentos e toda a lógica de funcionamento da linguagem.
Na concepção da figura do nó borromeano, o registro simbólico é o que faz nó ao imaginário e ao real, já que, de fato, traz a função do nó. Como? A partir da operatória significante. Se um significante não significa nada a si mesmo e necessário se faz ao menos um segundo. O primeiro antecipa o segundo e este ressignifica o primeiro. Estamos falando do boucle/laço significante.
Exemplos:
1 - Um sujeito que sempre se sente inferior aos outros. Esse "inferior" se destaca como S1 que organiza a cadeia significante, como se este fosse um "significante mestre" conectando-se a outros significantes S2, S3, S4…ou seja, à sua cadeia discursiva, em sua livre associação. Essa cadeia representa a rede de pensamentos e emoções que sustentam a crença do sujeito em sua inferioridade.
*Que aí entra o analista pra furar, cortar, dialetizar essa cadeia…
2 - Se tomarmos como S1 a crença na identidade de uma estrutura neurótica pós operação do significante NdP (ou seja, a maioria de nós que ainda acreditamos na nossa identidade), podemos inferir que, numa visão mais generalizada, nossa intenção maior na vida será dar sentido à este S1 (identidade) através de suas ações, sendo estas S2, S3, S4, etc.
*S2: psicanalista, S3: mãe e pai, S4: ajudar as pessoas, etc.
No que tange o conceito de real na teoria lacaniana, o caminho mais propício ao entendimento é relacionar com o corpo, a carne, o osso, o organismo, o inefável, etc. No entanto, real é relativo à demonstração lógica ou matemática, não à natureza, não é natural.
O registro do real tem como base o simbólico, pois é o registro simbólico que ordena o real através da linguagem, enquanto o imaginário busca preencher a falta do real através da identificação com o Outro.
O real se configura como o impossível de ser simbolizado em sua totalidade pela linguagem, o inconsciente em si, aquilo que escapa à compreensão racional e se manifesta como angústia, desamparo e falta. O real se faz presente na ausência, naquilo que não tem lugar na ordem simbólica.
Uma representação imagética que me salta para tentar expor a ideia de real em Lacan é o devir da filosofia: imagine uma fonte de água. Você consegue pará-la? Essa fonte traz todos os sentimentos que sente, essa fonte traz todos os pensamentos que pensa. Toda angústia que tenta simbolizar. Isso não cessa. A ordem simbólica é da qual utilizamos para tentar expressar, definir, entender, nomear essa fonte incessante que está acontecendo, que é real.
Segundo Lacan: "o real é o que do simbólico se enuncia como impossível."
Exemplos:
- A dor física intensa e inominável
- O encontro com a própria morte na próxima esquina
- A influência do olhar do Outro que nos perturba
Lacan - A revolução negada
Resumo - Metáfora Paterna x Complexo de Édipo
Pedro Paschuetto
Para Freud a ideia de pai remete à um constructo mítico que tem por base o mito do pai da horda primeva, atribuindo a esse pai características de garanhão - aquele que pega todas-, características de dominação - aquele que bate em todo mundo -, características de poderio absoluto - aquele que diz como as coisas tem que ser -, o macho alfa da parada, a figura do hétero top nos dias atuais.
Essa visão acaba sendo um problema quando o acontecimento do Édipo estaria determinado por um modelo original que operaria como um princípio primário.
Estas características como premissas da figura do pai da horda dificulta outros modelos de família que não o do macho com a fêmea e sua prole.
Lacan considera o mito da horda primeva como uma fantasia neurótica. Para Freud, estabelecia um grande parâmetro das relações com a figura paterna.
Freud parte do princípio do assassinato do pai da horda, enquanto Lacan da ordem simbólica, sendo um significante da lei e da procriação. Porque se chama de Nome-do-Pai? Lacan se baseia na religião cristã, onde a figura significante de Deus traz características de criação e procriação. O Nome-do-Pai é formulado pelas mesmas: criar a função do significante e procriar o efeito do deslocamento de uma função do significante. O Nome-do-Pai deve necessariamente operar para que se inscreva que a função da criação provém do significante.
Émile Benveniste foi um linguista francês dedicado ao estudo das línguas indo-europeias. Seus estudos traz uma consideração significativa que nos interessa: a diferenciação entre pai pessoa (cpf, homenzinho, o ser que veste uma roupa de carne e osso, "aquele que cria") e pai conceito, significante, função, figura mitológica.
Em seus estudos, Benveniste identifica pater como um emprego carregado de conceitos divinos, mitológico, onde evoca o nome 'dyeu pater' (Júpiter) abarcando o vocativo grego 'Zéu páter'. Essa noção de pai não abarca uma relação pessoal, a paternidade física está excluída, fora do parentesco estrito.
O termo afta em hitita e atta em eslavo antigo se referem à paternidade física, pessoal, cpf, homenzinho, o ser que veste uma roupa de carne e osso, "aquele que cria".
Houve um missionário cristão chamado Ivens que relatou dificuldades no pacífico ocidental em traduzir os evangelhos e
principalmente o Pai Nosso, pois nenhum termo melanésio correspondia à conotação coletiva e divina de pai, Benveniste o cita:
A paternidade, nessas línguas, não é mais que uma relação pessoal e individual.
Um pai universal é inconcebível entre eles. A divisão indo-europeia entre pater e afta/atta responde, em linhas gerais, ao princípio do pai coletivo e pai individual. Nas sociedades onde só se usa afta, não ficaram vestígios da antiga mitologia onde reinava um deus pai. A pesquisa de Benveniste nos permite estabelecer uma distinção claríssima entre o pai físico, pessoal, cpf, homenzinho, o ser que veste uma roupa de carne e osso, "aquele que cria" e o Nome-do-Pai, como função simbólica.
O pai independe da conexão entre coito e parto. É perceptível o esforço de Lacan em transpor a noção freudiana - ou do senso comum - de pai, de modo a estabelecer a sua consideração como um significante. O Nome-do-Pai é uma necessidade da cadeia significante, independe da forma que o pai assume em cada cultura.
Qual a distinção do significante Nome-do-Pai dos outros? Se distingue pois ele é o representante da lei no Outro.
Díke - grego - refere-se à lei dos homens: código legal (civil, comercial, penal, etc), ou seja, normas que regem os vínculos na vida em sociedade.
Thémis corresponde ao fundamento moral e religioso da sociedade: lei divina, fundamento do cosmos regido por uma ordem, natureza suprema que rege todas as coisas.
A lei que o Nome-do-Pai representa é Thémis e não Díke.
Complexo de Édipo
Freud considerava um programa inato, hereditário e universal, onde todo menino sente um impulso libidinal de origem orgânica por sua mãe, retratando um desejo incestuoso. O pai como rival, onde também é desejante e possuidor da mãe, é o agente de interdito do incesto fazendo lei, ameaçando e barrando o filho com a castração.
Se tratando de um programa inato, as particularidades de cada caso dependem das vivências, acidentes de percurso e das fixações determinadas pela quantidade de energia retida em cada fase.
É no menino que paira a ameaça da castração, angustiando-o. Para Lacan, a castração é do Outro (A) - e o Outro é o campo da linguagem.
Em relação ao Édipo feminino, Freud com seus conceitos biologicistas confere que a menina reconhece sua castração por não ter o apêndice no meio das pernas, aceitando com hesitação e relutância esta deficiência, onde nasceria o desejo de um dia ter um órgão assim. A culpa por não ter o pênis recai sobre a mãe, desprezando-a também por não o
tê-lo.
Sendo o Complexo de Édipo recalcado pelo Eu, torna-se a chave de leitura dos sintomas clínicos para o freudismo.
Metáfora Paterna
Lacan considera o complexo de Édipo freudiano um mito, onde a estrutura neurótica se baseia numa tentativa de dar conta da falta estrutural da linguagem, ou seja, a história particular das vivências da infância de uma pessoa trata-se de uma contingência, algo casual, uma manobra neurótica a fim de substituir um efeito da estrutura pela história familiar. Não que a história deva ser desconsiderada da análise, pois é por meio da história que a incompletude da estrutura é revelada.
A história não dá conta da falta inerente à estrutura da linguagem, ao conjunto dos significantes, que se escreve S(A) - significante da falta no Outro.
Lacan considera pai como um significante que substitui outro significante, sendo assim não pode ser ninguém em especial. É nesse nível - do funcionamento do significante - que os psicanalistas devem procurar as carências paternas, não irão encontrá-las em nenhum outro lugar. Ou seja, a carência paterna que importa para os psicanalistas, a que conta em sua prática, é a carência do significante do Nome-do-Pai.
O significante Nome-do-Pai representa a lei no Outro e opera dentro da bateria dos significantes. O desejo não é causado por este significante, mas sim causado por uma falta.
A metáfora paterna é uma metáfora, ou seja, uma operação de linguagem. Metáfora sendo figura de linguagem, tem a função de substituir um significante por outro significante, resultando a produção de uma significação nova.
Essa metáfora paterna é uma operação sobre a incompletude da estrutura da linguagem, onde depende da presença do significante Nome-do-Pai tendo como efeito a extração do objeto a, promovendo o estabelecimento da realidade.
Podemos notar que todos os significantes no campo do Outro(A) passam a se articular ao significante do Nome-do-Pai e toda significação produzida será fálica. Toda metáfora produz uma significação nova. No caso da metáfora paterna, a significação produzida é o falo, que conota a lei afirmando e sustentando o não-todo, ou seja, todo significante significará algo, mas nunca tudo. Esta lei postula um intervalo entre os significantes, o que impede que se juntem como acontece na holofrase.
A metáfora paterna é legalizante, ordena as relações fundamentais entre os falasseres e a criação do sujeito, pois ela tem um efeito de um nó na cadeia significante - chamado por Lacan de ponto de basta - onde detém seu deslizamento que poderia seguir ao infinito sem ele. A realidade corresponde a esse fechamento, fazendo com que nem tudo seja possível. Quando esta operação é acidentada, costuma estruturar as psicoses: Deus vive no céu da minha boca. Assim justificava um psicótico sua recusa em comer.
Lampião saiu do filme que eu tava assistindo e me chamou pra retomar o cangaço com ele. Eu tenho que ir, senão ele me mata. A lei alterada na psicose é Thémis, não Díke. O fracasso da metáfora paterna pela foraclusão do significante Nome-do-Pai tende muito mais a provocar a distorção da realidade do que do código penal. O psicótico vive num mundo que tende ao infinito, por conta de uma ordem simbólica não legalizada pela inscrição de um impossível.
Lacan - A revolução negada
Resumo - Narcisismo x Estádio do Espelho
Pedro Paschuetto
Por Karime Colares - APOLa Brasília
Introdução
Lacan fez o primeiro desenvolvimento da teoria do estádio do espelho em 16 de junho de 1936 na Sociedade Psicanalítica de Paris. Dois meses depois, em agosto de 1936 em Marienbad, Lacan participa pela primeira vez de um congresso organizado pela International Psychoanalytical Association (IPA), expondo seu trabalho do estádio do espelho. Dez minutos de exposição, é instado por Ernst Jones (biógrafo oficial de Freud), presidente da sociedade psicanalítica de Londres a interromper seu discurso.
Em 1949, no congresso da IPA após a 2º Guerra Mundial, retoma o tema do estádio do espelho como formador da função do eu e entrega o material para o congresso e sua publicação, incluindo o texto em seus Escritos.
Considerado à partir dessa perspectiva história, o estádio do espelho pode ser tomado como um esforço de Lacan e sua entrada na cena da psicanálise, acerca de uma questão relacionada ao conceito do eu até então seguida e talvez pouco ou nunca argumentada pelos pós-freudianos - exceto por Melanie Klein. Lacan denuncia e critica estes por terem relegado a psicanálise a uma mera "análise do eu" - psicologia do ego -, o que remete às psicoterapias em geral e não captado o sentido que Freud havia descoberto, anulando, assim, o que havia de subversivo em sua proposta.
[...] a obra de metapsicologia de Freud, posterior a 1920, foi lida às avessas, interpretada de maneira delirante pela primeira e segunda geração depois de Freud - essa gente insuficiente. [...] Tudo parte da educação do eu, ou da persuasão do eu, e tudo deve voltar para ali. [...]
Frequentar o seminário de Alexandre Kojève - filósofo hegeliano - sobre a Fenomenologia do Espírito levou Lacan a questionar-se sobre a gênese do eu, onde a leitura da segunda tópica ia em sentido oposto a toda "psicologia do eu", tendo duas leituras à partir da elaboração freudiana de 1920: a primeira levando ao entendimento do eu como produto progressivo do Isso, o representante da realidade encarregado de manter as pulsões sob controle - psicologia do ego -; a segunda questionava sua gênese em termos de identificação, ou seja, que o eu era reconduzido ao Isso a fim de mostrar sua estruturação à partir de etapas em função de imagos emprestadas do outro. Esta opção foi a de Melanie Klein e de Lacan.
Lacan sustenta que as concepções de eu dizem respeito não somente à psicanálise, mas a noções elaboradas por séculos pela filosofia e pelo senso comum.
Noções de eu em Freud e Lacan
Consideraremos a noção de Eu por três aspectos:
a. o conceito de energia: em Freud a libido corresponde à fonte que sustenta o aparelho psíquico. Já em Lacan, "o mundo simbólico é o mundo da máquina", a máquina significante tem autonomia em relação ao ser biológico, por si só isso já despersonaliza o Eu.
b. as noções de interior/exterior; dentro/fora: Freud propõe a interioridade do Eu em seu clássico modelo do aparelho psíquico. Em Lacan: "[...] o sujeito está descentrado com relação ao indivíduo. O Eu é o que um outro quer dizer".
c. a concepção de um Eu autônomo: em Freud, o Eu é uma instância que toma decisões, comanda a lógica do recalque, sendo capaz de atividades como censura e autocrítica. Em Lacan, temos que o sujeito em "imisção de Outridade", ou seja, o Eu dependente do Outro para sua concepção. Uma formação do inconsciente é uma imisção entre o sujeito e o Outro, entre analisante e analista, por exemplo. Não há o si mesmo; não há autonomia, o Eu está sempre em relação.
Começando pelo conceito de Narcisismo na constituição do Eu nas duas teorias de Freud: a do "Projeto para uma psicologia científica" e em "Introdução ao narcisismo".
Projeto para uma psicologia científica
Segundo os conceitos de Freud, o estado de desamparo está presente em seus textos desde muito cedo. Assim, ele nos diz que o bebê é lançado ao mudo de forma não acabada, incapaz de lidar com os estímulos que a vida lhe traz. Isso mantém a noção de que o indivíduo submetido às excitações, vive - ou revive - uma situação de desamparo, sendo esta a condição primitiva da edificação do psiquismo e com ele o próprio Eu da teoria evolucionista.
O estado de desamparo, somente após ter sido amparado por outro humano, começa a ficar minimamente capacitado para remover o excesso de excitação, precisando dessa "ajuda alheia" para a satisfação das necessidades.
Segundo a lógica freudiana, os traços mnêmicos são imagens que se inscrevem no psiquismo do vivente devido às vivências de satisfação, interferindo assim no livre fluxo da quantidade de energia. À partir daí, dos vestígios das experiências com outras pessoas das quais o bebê experimentou a satisfação e foram gravados os traços mnêmicos, que começará ocorrer uma apropriação destes últimos, sendo "ecos" dos acontecimentos e não a experiência em si. Isso dá o caráter de viver as experiências de forma alucinatória, tentando regular tais sensações que, segundo Freud, estão ligadas às descargas de tensão.
Sendo assim, o desamparo não é mais absoluto tendo sido apaziguado pela alucinação, no entanto essa alucinação não soluciona a necessidade. Freud postula que haja uma "instância organizadora" denominada Eu para lidar com a regulação do fluxo de excitação.
O Eu seria efeito de uma exigência econômica, ligado à contenção do fluxo que perpassa o psiquismo desamparado.
O Eu como possibilidade de articular, na ausência do outro, os restos de sua presença devidamente registrados sob a forma de traços mnêmicos. Um outro de fora que faz marcas dentro: é com essas marcas internas que a criança vai ter que lidar.
Estes conceitos traz a noção do dentro e fora, entre "realidade psíquica" - interna e ficcional - e "realidade propriamente dita" - exterior e real.
As diferenças entre a teoria freudiana e lacaniana nem sempre são lembradas, mas aparecem claramente no desenvolvimento das teorias.
No texto "A direção do tratamento e os princípios de seu poder", Lacan relata o caso de um paciente que curou seu sintoma de impotência sexual logo após sua amante lhe relatar um sonho próprio. Isso aponta que o inconsciente é o discurso do Outro. Segudo Freud, "meu inconsciente" manifesta-se apenas da própria pessoa, tendo como o corpo o limite do psiquismo e o que ocorre com outra pessoa será um fato casual.
Caso se ignore que o assunto da localização é de mínima importância para a psicanálise, é porque se ignoram as consequências éticas clínicas que esta questão suscita. Isto salta à vista quanto à obsessão pela fidelidade da palavra, pelo que "efetivamente disse" o analisante, do qual revela um modo particular de conceber o inconsciente.
A teorização sobre os dois mundos - interno e externo - dá lugar a práticas terapêuticas de orientação adaptativa, entre a batalha da realidade psíquica e realidade exterior. Embora Freud não tenha claramente apontado nesta direção, dá margem para esse encaminhamento.
Narcisismo
Segundo Freud, há um estágio do desenvolvimento da libido entre o autoerotismo e o amor objetal que recebe o nome de narcisismo. Consiste no momento do desenvolvimento do indivíduo em que ele reúne suas pulsões sexuais de atividade autoerótica a fim de conseguir um objeto amoroso, tornando a si e o próprio corpo antes de passar para a escolha de um objeto que seja outra pessoa. As afecções narcísicas, portanto, representariam um excesso de investimento libidinal.
Em Totem e Tabu, um novo avanço é realizado e Freud afirma que o narcisismo não é uma fase evolutiva, mas uma estrutura permanente que continua a existir, estaria na estruturação do Eu, unificando as pulsões parciais e autoeróticas.
Mas que catzo isso nos interessa neste assunto? Interessa-nos pois Freud propõe que o Eu como unidade que não pode existir desde o começo da vida e que tem que ser desenvolvido, o narcisismo seja postulado como um dos operadores desta constituição, um percurso que iria do autoerotismo ao narcisismo como base da constituição do Eu.
Freud em sua narrativa sobre o desenvolvimento do Eu no texto sobre o narcisismo, dá a deixa de "uma nova ação psíquica" que o pós-lacanismo encaixa o estádio do espelho.
Para Freud, uma pessoa se apaixona por outra segundo o tipo narcisista de escolha objetal, ou seja: pelo que foi antes e não é mais, ou então o que possui as qualidades que ela jamais teve. Ou seja, ama-se o que se é, o que se foi e o que se gostaria de ser. Esse "eu autônomo" tomado como objeto continua dirigindo escolhas objetais orientadas por uma tentativa de restabelecer um primeiro momento de investimento narcísico.
Lacan propõe exatamente o contrário: o eu se estrutura à partir da imagem do semelhante, sem a qual não haveria possibilidade alguma de constituição, logo, a origem é o semelhante e sua imagem.
Segundo Eidelsztein: essa via carrega consigo um duplo engano em sua estrutura fundamental. O primeiro é que a imagem do outro se apresenta ao sujeito como falsamente unificada - ou seja, não compreendendo que o corpo é do registro do imaginário. Outro engano é designado por Lacan mediante a frase: eu é outro; quer dizer, enquanto para Freud "o outro como objeto sempre sou eu", para Lacan se trata de que eu é outro; é a versão contrária.
Estádio do espelho
Para dar início ao desenvolvimento deste tópico, é importante ressaltar alguns pontos bases:
Os conceitos freudianos foram interpretados por Lacan em sua condição de alteridade. Em Freud o Inconsciente é intrapsíquico, em Lacan o discurso do Outro; em Freud pulsão é um conceito limítrofe entre psíquico e somático vindo do interior do corpo, em Lacan será a demanda do Outro; em Freud o desejo é próprio do sujeito, em lacan é o desejo do Outro; em Freud o Eu é particular e individual, em Lacan o Eu é o outro.
Não que o Inconsciente mude de lugar, mas de levar em conta que na relação que se estabelece entre o sujeito e o Outro, o fundamental é o entre, o intervalo. Uma frase de Lacan: "um fenômeno inconsciente, que se desenrola num plano simbólico, descentrado, como tal em relação ao eu, ocorre sempre entre dois sujeitos".
Na teorização sobre o "estádio do espelho", Lacan renova as teorias do eu (moi) e acaba fundando a dimensão do registro imaginário. A noção de simbólico está presente, mas não articulada e muito menos representada.
Segundo a teoria, o estádio do espelho ocorre entre 6 e 18 meses sendo um momento crucial no desenvolvimento do bebê quando ele se depara com a sua própria imagem refletida em um espelho e acaba por se identificar com ela, sendo crucial para a formação do eu, permitindo ao bebê uma noção de si mesmo como um indivíduo. Ele também se aliena dela, pois a imagem é apenas uma representação parcial e imperfeita dele, contribuindo para a percepção do eu como algo fragmentado e incompleto. Este processo dá abertura para o conceito de desejo por unidade e completude do sujeito, o impulsionando a buscar sua própria identidade.
Segundo Lacan: "O sujeito é ninguém. Ele é decomposto, despedaçado. E ele se bloqueia, é aspirado pela imagem, ao mesmo tempo enganadora e realizada do outro, ou, igualmente por sua própria imagem especular. Lá, ele encontra sua unidade".
Em cima disso Lacan teoriza sobre a loucura: quanto maior a crença, a certeza nesta "imago ideal", maior a loucura; se pudéssemos exprimir essa relação em termos matemáticos, elas seriam "diretamente proporcionais"- certeza e loucura. Como nos diz Lacan: "[] se um homem que se acredita rei é louco, não menos o é um rei que se acredita rei".
Essa captação da imagem da forma humana que tratará a dialética do comportamento da criança na presença do seu semelhante, um conceito chamado "transitivismo infantil", onde uma criança que bate em outra, diz que foi agredida por esta outra. Não que ela esteja mentindo, essa imagem é do outro literalmente. Isso fundamenta a diferença do mundo humano do animal, sendo o objeto de interesse humano é o objeto do desejo do outro, e dependente de uma predeterminação instintual.
A gênese do eu explica que seja esse o princípio daquilo que Lacan denomina "conhecimento paranoico", onde o paranoico se torna um intérprete, que em tudo vê sinais que se referem a sua pessoa. O acaso que ele contesta, conspira contra ele. Nada acontece por acaso, tudo adquire sentido e esse sentido se refere a ele.
Lacan - A revolução negada
Resumo - Neurose em Freud e Lacan
Pedro Paschuetto
Por Martín Mezza
"A anatomia é o destino." Como Freud pôde colidir sua teoria com essa sua frase, posto que suas descobertas e postulados acerca da psicanálise versam sobre o psiquismo, o inconsciente, as emoções, algo sutil, intangível e não palpável? A noção de castração teve sua função para a época, principalmente no tocante aos preconceitos articulados
quanto ao protesto masculino e a inveja do pênis, logo, a ferida sempre aberta por este apêndice corporal que a mãe não deu.
É bem difícil imaginar que pessoas que passaram pelo divã de Freud dissessem algo de seus sintomas por ausência do pênis, e/ou pensar e atuar obsessivamente por passividade no amor ao pai. Fica evidente de uma operação interpretativa vinculada ao modelo teórico de Freud.
A descoberta psicanalítica é o inconsciente, e o destino anatômico funciona como catalizador, balizador e conceito chave da teoria freudiana da neurose.
Com esses elementos, formulamos nossa tese de partida: a elaboração teórica do sofrimento neurótico próxima da anatomia biológica, fez com que Freud e a psicanálise se afastasse de seu descobrimento: o inconsciente. Assim a teoria freudiana da neurose não articula bem a descoberta do inconsciente.
Posto isso, sustentamos que a teoria de Lacan radicalmente diferente da de Freud articula melhor o conceito de inconsciente e o padecer neurótico.
Historicamente falando, é do senso comum comentar que Freud descobriu o inconsciente escutando as histéricas, colocando a histeria como o centro do debate da psicopatologia da época, concorrendo com Charcot, Breuer, Janet e outros.
Freud avança e estende a hipótese do inconsciente para explicar as psiconeuroses de defesa. O inconsciente era objetado por estar demasiado ligado aos processos disfuncionais da mente. Lacan parte de obras afastadas da elaboração teórica da neurose para relançar o descobrimento do inconsciente, manifestando em 1953 como resgate do sentido psicanalítico, dessa vez mediante o símbolo e a linguagem. Ele coloca que sonho tem estrutura de "frase", "rébus" (enigma figurado que consiste em exprimir palavras ou frases por meio de figuras e sinais, cujos nomes produzem quase os mesmos sons que as palavras ou frases representam); na "psicopatologia da vida cotidiana", onde o "lapso" e "números escolhidos ao acaso" revelam o caráter "combinatório do inconsciente"; e em "chiste e sua relação com o insconsciente", a transparência da demonstração do efeito do inconsciente.
Fundamentando nossa tese inicial, os textos de Freud onde se elabora a psicopatologia das neuroses não são apresentados por efeitos do inconsciente.
Em síntese, apresentando assim uma definição do sofrimento neurótico: são resultado de um conflito entre um "eu imaturo" e "pulsões hipertensas" ou traumas sexuais precoces.
Outros dois critérios para elaborar as neuroses: o conflito entre instâncias psíquicas como mecanismo tomado na sua generalidade e a sexualidade como causa eficiente.
O conflito psíquico
O conflito psíquico permite distinguir e agrupar as modalidades do sofrimento neurótico, onde Freud organizou o grupo como psiconeuroses de defesa como histeria, obsessão e fobias, posto que o mecanismo de defesa fazia com que a representação inconciliável com as expectativas do sistema consciente, não alcançasse esse estado.
Logo, este grupo se diferenciava das neurastenias e neuroses de angústia, onde o mecanismo de defesa inexistia.
Na histeria, era o mecanismo conversivo; na obsessão, o falso enlace; na fobia, o contrainvestimento.
Freud abandona a noção genérica de defesa para trabalhar o recalque. Reconceitualiza "neuroses de defesa" como "neuroses de transferência".
Interessa a nós salientar que a lógica do conflito psíquico está presente do início ao fim da obra freudiana.
Etiologia sexual
O que era inconciliável de representação consciente era de caráter sexual, assim abrindo para explorar o papel etiológico da sexualidade, como a introdução da sexualidade perversa plimorfa; o amor sensual e erótico nas escolhas de objeto no contexto edípico; o conflito entre pulsões sexuais e do eu; etc.
É possível observar em sua obra que Freud oscila entre fator hereditário e vivências sexuais infantis. Também observamos divisão das vivências traumáticas em ativas ou passivas, visando as diferenças diagnósticas.
Muitas dessas oscilações se dão pela fragilidade teórica (conflito psíquico e etiologia sexual) para sustentar a determinação inconsciente da sintomatologia neurótica. Sempre havia algo que faltava para definir a determinação sexual do sintoma, o elo perdido da etiologia sexual.
Com essa fragilidade, Freud tinha dificuldade em explicar as reagudizações dos sintomas.
Neuroses traumáticas, narcisistas e de guerra, por exemplo, não se podia "observar" a presença de vivências sexuais infantis suficientemente potentes para desencadear um conflito entre a libido (sexualidade) e eu.
O que fez Freud diante deste impasse? Ele recorre à algo mais próximo do convencionalismo, a partir de uma teoria do conflito entre um "eu de paz" e um "eu de guerra", fornecida por Ferenczi e Abraham e que não o convencia muito, numa tentativa de salvar a hipótese fundamental do conflito entre pulsões hipertensas e o eu.
Finalmente agora temos condições de considerar as elaborações de Lacan sobre a neurose incomensuráveis com as de Freud.
De maneira sutil Lacan redefine a descoberta psicanalítica como "as relações do desejo com a linguagem".
Freud não descobre o inconsciente, senão o desejo da histérica, que neste movimento exprime algo da relação entre fala e desejo.
A elaboração freudiana da neurose vai apagando a descoberta do inconsciente.
Freud então rompe os grilhões do desejo da histérica a outro que mascara a denúncia articulada no discurso da histeria e faz com que a interpretação analítica se desloque da dialética do desejo para a demanda.
A elaboração de Lacan sobre as neuroses é onde "tudo está por refazer", implicando numa reformulação do inconsciente, ou seja, da descoberta psicanalítica.
Como Lacan não deixou seu legado organizado, selecionaremos elaborações em função da sua proximidade e capacidade em se opor aos dois critérios mais fundamentais da teoria da neurose freudiana: conflito psíquico e etiologia sexual.
Onde, para Freud, havia conflito entre instâncias psíquicas, para Lacan trata-se de um conflito entre sujeito e Outro.
Onde Freud colocava o inconsciente sexual (pulsão) como causa do sintoma neurótico, Lacan coloca o tropeço, a perda, a falta, o buraco.
Aqui, três são as palavras chaves: gerar, inscrever e modulação. Lacan não descarta completamente o que os psicanalistas chamavam relações de objeto, ou seja, as experiências do sujeito com o mundo, mas muda sua hierarquia ontológica.
As experiências frustrantes e/ou gratificantes são essenciais na medida em que se encontram "geridas" pela relação mais primordial entre o sujeito e o Outro enquanto lugar da palavra e da demanda. Essa relação entre sujeito e demanda do Outro "inscreve", nas experiências "reais", certa "modulação" da história do sujeito.
A relação não será com o objeto, senão entre sujeito e Outro. O objeto não será aquele no mundo, senão o resíduo da divisão entre o Outro e o sujeito identificado na demanda. Logo, o objeto da dialética do desejo não tem relação com as fases libidinais, senão dependente da estrutura do corte significante e da sua forma imaginária.
Segundo Lacan:
"Em que medida e até que ponto posso contar com o Outro? O que há de confiável nos comportamentos do Outro?"
Em torno dessa interrogação gira um dos conflitos mais primitivos do ponto de vista que nos interessa.
"A questão de saber se o sujeito pode ou não contar com algum Outro é o que determina o que encontramos de mais radical na modulação inconsciente do paciente, neurótico ou não."
Se não há primazia da experiência infantil individual, tampouco pode haver conflito entre a libido e um eu imaturo, levando Lacan a considerar o conflito base do sofrimento neurótico na relação do sujeito com o Outro. Conflito este que não é entre instâncias psíquicas, mas sobre uma interrogação de confiança/desconfiança sobre os comportamentos ou promessas (fala e discurso) do Outro.
A interrogação de confiança/desconfiança sobre o Outro é só uma formulação mais abstrata sobre o pivô da dialética do desejo: isso é o que dizes que queres, mas o que desejas? Aqui notamos o destaque à diferença entre demanda e desejo.
Instaurado está um conflito primordial do sofrimento neurótico: um conflito entre demanda e desejo, onde a verdade tem um papel relevante.
Assim se faz admissível definir a neurose como um tipo de "paradoxo entre fala e linguagem", inconsciente redefinido como "as relações do desejo com a linguagem" ou como "um saber não sabido" ou "o lugar de uma verdade que não se sabe".
Posto isso, o sofrimento neurótico não pode se restringir suas origens às fases de desenvolvimento infantil, pois esse sofrimento de interrogação pode acontecer na infância, na adolescência ou na vida adulta.
Caso queiramos manter o termo infância no esquema teórico, temos que abandonar a ideia com a psicologia do desenvolvimento freudiano associada com fases libidinais, mas focando na relação entre infância e linguagem.
A raíz latina é infantia, relativo à "incapacidade de falar". Não no seu entendimento ao pé da letra, mas no sentido de um ser privado de expressão pública.
Aquilo que não se pode dizer, que está na infantia, é em função de uma certa relação discursiva.
Lacan propõe que no sujeito que deve advir não se pode entrever nenhum amadurecimento, numa divisão entre sujeito e Outro, onde isso fala ou pensa sem sujeito "formado", abrindo para uma predisposição para a neurose aos 5, 10, 30, 50 ou 100 anos, em qualquer momento de vida pode ocorrer um conflito, um paradoxo entre linguagem e fala, onde o sujeito se veja "suspendido", "perdido", "desconhecido", "inominável".
*Questionamento: quem sou eu?
É sabido que pode haver uma dificuldade e resistência por parte da comunidade psicanalítica em desconsiderar o esquema freudiano dos estágios de desenvolvimento, não temos como lutar contra isso, podemos apenas prosseguir com argumentos de que o modelo de Lacan prescinde desse esquema.
Em Lacan, o inconsciente não é uma instância que armazena e mantém conteúdos sexuais de uma existência imatura e recalcada. O inconsciente de Lacan se localiza na descontinuidade, no buraco, no intervalo entre a causa e aquilo que afeta. É por essa falta que o sofrimento neurótico se articula.
O sofrimento neurótico é teorizado como decorrente de uma particular relação ao Outro - à demanda do Outro , entorno da qual se organizaram os problemas do desejo. Em geral, problemas como uma dificuldade no reconhecimento do desejo.
Uma frase para o sofrimento de estrutura neurótica:
O que sou no desejo do outro?
Na Neurose Obsessiva, será um desejo impossível ligado ao reconhecimento, pois opera a fantasia de ter o falo.
Na Neurose Histérica, será um desejo insatisfeito que demandará amor, demandará um lugar, pois opera a fantasia de não ter o falo.
Na Neurose Fóbica, será um desejo prevenido, pois opera a fantasia de ser o falo.
Lacan - A revolução negada
Resumo - O conceito de Supereu e uma mudança de paradigma
Pedro Paschuetto
Introdução
Este artigo de Carina Rodrigues Sciutto surge à partir da apresentação de Alfredo Eidelsztein sobre o Supereu em Lacan no seminário de desambiguação na APOLa.
A ideia aqui é trazer os aspectos que caracterizam o Supereu em Freud e comentar as implicações clínicas que, com o tempo, foram se revelando não tão eficientes em alguns aspectos. Neste ponto que entra a revolução científica e o processo de mudança de paradigma, alicerçado pelo texto A estrutura das revoluções científicas de Thomas Kuhn, apontando para a proposta do Supereu em Lacan bem como suas implicações e limites teóricos e clínicos.
Supereu em Freud
No texto O Eu e o Isso (1923) é onde Freud apresenta pela primeira vez o conceito de Supereu, no qual em Projeto para uma psicologia científica de 1885, o capítulo VII da Interpretações dos sonhos de 1900 e outros trabalhos de metapsicologia de 1915 já foram precursores do conceito.
Neste momento Freud tem dificuldades em estabelecer uma relação entre os conceitos da primeira tópica (CS, PCS e ICS) com os da segunda (Eu e o Isso), pois percebeu que havia um sentimento inconsciente de culpa que não se encaixava nos conceitos, então que uma nova proposta de diferenciação da metapsicologia da psiquê é elaborada.
James Strachey, psicanalista, tradutor e editor das obras de Freud para o Inglês, aponta para onde Freud bebeu para formular os conceitos de Isso(Id), Eu(Ego) e Supereu(Superego):
Isso(ID): Baseado na obra de Georg Groddeck e seu uso faz menção à Nietzsche.
Eu(Ego): Primeiramente era considerado como o "si mesmo", uma pessoa, depois como parte psíquica, uma instância da psique.
Supereu(Superego): na seção III de Introdução ao narcisismo, comenta que o narcisismo teria como base um ideal do eu a ser alcançado. Posteriormente em O Eu e o Isso apontará para o Supereu como equivalente ao Ideal do Eu sendo um apêndice, um derivado, uma consequência resultante do Complexo de Édipo.
Sobre as premissas na construção do Supereu.
Capítulo I
Freud aponta que a premissa básica da psicanálise é a diferenciação entre consciente e inconsciente no psiquismo. O Eu como organização destes processos: motilidade, descarga de excitações, controle e censura do sono, bem como os recalques de conteúdos anímicos mais intensos.
A novidade proposta é que parte do Eu pode ser inconsciente.
Freud percebe que dessa parte inconsciente é que surge a resistência.
Capítulo II
O destaque é para a origem do conceito de ISSO, segundo Freud:
"Refiro-me a Georg Groddeck, que está sempre a enfatizar [...] que somos, como diz, 'vividos' por poderes desconhecidos e incontroláveis."
Freud propõe o Eu como parte do Isso alterada pelo mundo exterior com mediação do sistema Pré-Consciente, representando a razão e prudência sobre as paixões do Isso.
Em Freud, o Isso é inconsciente e interior, enquanto o Eu é alterado pelo mundo exterior. Lacan modifica essa dicotomia entre interno e externo com suas teorias.
Capítulo III
Aqui Freud explica a constituição do Eu, Supereu e Isso.
O Eu como uma instância que se constitui entre investimento do objeto e identificações.
Na gênese do Ideal do Eu, uma identificação primeira, direta e imediata com o pai, tendo uma premissa dual recalcada do Complexo de Édipo no sentido de ser e não ser como o pai.
Logo o Ideal do Eu, herdeiro do Complexo de Édipo, norteando o Eu (representante do mundo exterior) submetido ao Isso, enquanto o Supereu como advogado do mundo interior do Isso.
Supereu como censura moral onde sua intensidade se dará pela conservação do caráter do pai, culminando em: quanto mais intenso e mais rapidamente reprimido, mais rigoroso como consciência moral e culpa sobre o eu.
Capítulo IV
Freud encontra problemas em integrar sua teoria das pulsões com este novo modelo do aparelho psíquico, pois parte do pressuposto de pensar a pulsão como força biológica.
Capítulo V
Neste último capítulo Freud define o Supereu.
O Supereu como algo estabelecido perante à dependência do passado imperando sobre o Eu.
Expõe a tese de grande parte do sentimento de culpa ser inconsciente, vindo da consciência moral do Complexo de Édipo que é inconsciente.
Por que sentimento de culpa e severidade com o Eu? Freud baseia a resposta à essa questão no cultivo da pulsão de morte, onde o Eu sofre três ameaças: mundo exterior, libido do Isso e severidade do Supereu.
A função positiva do supereu seria de proteção e salvação, que primeiro era do pai.
A proposta do Supereu em Freud e o imperativo categórico de Kant
O conceito de Supereu coincide diretamente com o de imperativo categórico de Immanuel Kant.
"Assim como a criança era compelida a obedecer aos pais, o Eu submete-se ao imperativo categórico do seu Supereu."
Diferenças estruturais do Supereu
Em Freud: Instância da estrutura individual da pessoa, herdado, internalização da voz dos pais, não modificável, imperativo categórico de Kant, herdeiro do Complexo de Édipo.
Já em Lacan, partindo de que o inconsciente é estruturado como linguagem, linguagem essa compartilhada como um sistema simbólico universal, o Supereu é uma instância simbólica que se forma a partir da relação com o Outro, esse Outro sendo representante da linguagem.
Em Lacan: O Supereu é uma instância simbólica resultante de uma cisão do próprio campo simbólico; aquilo que impera sobre mim (Supereu: super: sobre eu: mim), sua materialidade é significante (ou seja, o que salta na cadeia de significantes).

Freud: Estrutura da psiquê individual
Lacan: Entrada na linguagem já existente, Supereu cisão do sistema simbólico: ou seja, imagine uma suruba bem gostosa, aquela orgia: - Supereu barra: moral - do verbo empata foda - do verbo: alguém chegou enquanto me masturbava - do verbo: impedimento a obtenção de prazer nos meus delírios, imaginações
Por Lacan entender como Sintoma: passível de ser reduzido - elaboração - falar sobre
Proposta: o Supereu como sintoma e as estruturas clínicas
Abordando o Supereu como um sintoma, abre-se a possibilidade para que seja reduzido, elaborado, trabalhado, modificado e quiçá solucionado.
À partir do momento que a subjetividade/sujeito encontra-se cindida por esse sintoma privilegiado, que não chega a ser inútil pois tem sua função, a redução sintomática do efeito do Supereu permite que o sujeito trabalhe em outros significantes e cadeia de significantes, permite que o sujeito diminua o peso e a incidência que o Outro exerce "sobre mim", inaugurando novas formas de pensar, sentir e agir no mundo.
Aqui podemos pensar na dita inveja que uma estrutura neurótica tem sobre a psicótica: transgressão da lei, gozo sem limites, ausência de culpa, onipotência, liberdade sexual, etc.
Lembrando que essa "inveja" trata-se de uma fantasia da estrutura neurótica, pois é a forma que ela interpreta a estrutura perversa dada sua forma de estar na linguagem, posto que a estrutura perversa possui suas formas de sofrimento.
Supereu em Lacan e direção da cura
*Identificar os enunciados isolados do conjunto da lei que aparecem na estrutura, produzindo sintomas. Imperativos sobre mim.
Pensar o Supereu como sintoma implica que está determinado pelo jogo dos significantes no campo do Outro.
*A forma que o sujeito estabelece com esses significantes à partir da entrada na linguagem
Será necessário determinar os significantes que fazem parte desse campo (A=Outro)
*Importância de pescar os significantes (S1, S2, S3, S4) e a particular cisão desse campo que constitui o Supereu.
*Atenção do analista para quando o Supereu salta na livre associação, identificando os limites e cisões implicadas pelo Supereu
I - Supereu no campo das neuroses
Esquema R: Lindo esquema! Bem elaborado… A divisão do Imaginário, Real e Simbólico. Deve ser interessantíssimo entender isso aqui! Pulo.
Que o sujeito esteja foracluído no sistema significa que nada na estrutura pode responder à pergunta: O que sou?
*Não produziu barra no Outro, Não operou um Sujeito Barrado, não extraiu objeto a, não constituiu significante S1, "Eu": sujeito foracluído.
Opera aqui o significante do Nome-do-Pai, impedindo que um significante (S1) por si só represente o sujeito.
*Estrutura neurótica: Ideia de eu, gravou, constituiu suficientemente S1
*Estrutura psicótica: Não gravou, não há S1 constituído suficientemente para que representa a ideia de si
A questão clínica, no seio do campo da neurose, é como o sujeito modula sua resposta perante a inexistência do significante que o representa.
*A inexistência é do significante fálico. Quando começamos a perceber através do processo de análise na clínica de que não somos aquilo que pensamos ser.
A histérica sustentará essa falta e o obsessivo a negará.
*Como o sujeito modula essa falta de representação fálica?
Estrutura histérica: "É, sou faltante mesmo, fui magoada(o) de nascença."
*Nascença instância psíquica, entrada no campo da linguagem, ordem simbólica. Ausência da fantasia fálica, fantasia da capacidade de preenchimento, por isso a busca por significar algo para outra pessoa.
Estrutura obsessiva: "Eu não sou homem? Tá me tirando, seu cuzão? Vem aqui que te arrebento!", "Eu pago pra você, tenho sobrando.", "Dou conta de 3 filhos, da empresa, de casa e cuido dos meus pais"
Lacan - A revolução negada
Resumo - O texto-clínico como analisador metodológico na desambiguação entre Freud e Lacan
Pedro Paschuetto
Introdução
Desambiguar trata-se de diminuir as delimitações que faz daquilo ter um caráter único, particular e específico, permitindo interpretações outras do mesmo assunto.
A proposta aqui é pensar e abordar a diferença entre a teoria de Freud e a de Lacan a partir de uma concepção epistemológica, ou seja, relativo ao estudo detalhado das razões, premissas e hipóteses que ambas se desenvolveram. Primeiramente serão argumentadas a partir da noção de discurso e em seguida a construção do caso considerando o termo técnico texto-clínico.
Introdução da diferença a partir do discurso
É importante manter em mente: estamos contrastando dois paradigmas distintos, cada qual com sua lógica e efeitos de construção.
O que Lacan constrói implica numa inclusão do problema que ele faz diagnóstico na teoria de Freud. Como exemplo, a noção de inconsciente que Lacan aponta em Os quatro conceitos fundamentais, afirmando “o inconsciente de Freud e o nosso”, onde a grosso modo, o inconsciente freudiano se faz particular, pessoal e individual e o lacaniano estruturado
como linguagem, ou seja, impessoal e existente antes mesmo do sujeito ter sido inserido no campo simbólico.
Mas por que Lacan mantém o mesmo nome para o termo Inconsciente?
Isso pode gerar confusão se tratando de um mesmo objeto lido de outro ponto de vista, mas em alguns casos Lacan conserva o termo para construir sua oposição crítica, apontando o que ele diagnostica como problema teórico.
Outra forma de advertir essa crítica é pelo uso dos neologismos, da qual Lacan se aproveita e constrói um deslize na função de definição do termo, operando uma não adesão ao significado e que na maioria das vezes, inclui o questionamento ou diagnóstico do problema criticado. Como exemplo: hontologie no qual o “h” faz da “ontologie” uma vergonha, uma vez que em francês, o termo honte significa “vergonha”. Assim fica claro que Lacan cutuca a ontologia, assim como a pergunta sobre o ser enquanto ser.
Frente às dificuldades de analisar construções que podem não ser consideradas opostas, é embaçado desconstruir um conceito freudiano equivalente ou similar pela ótica de Lacan. Um exemplo dessa dificuldade é a equiparação entre o uso conceitual de Freud de representação e de Lacan com significante.
A representação implica um elemento prévio, algo de fundo existente que evoca outra coisa que só pode estar ali em sua representação. Assim sendo, o pensamento é quem gera a representação e a linguagem a ferramenta que tenta representar aquilo.
A noção de significante em Lacan não encontra correspondência nesse modelo, na medida em que decompõe a noção de signo definido como a composição do significante com o significado. Essa decomposição da unidade do signo é proposta quando ele diz que “um significante enquanto tal não significa nada” e que os significantes se articulam como uma cadeia significante. Neste sentido, a linguagem é uma estrutura significante.
Apresentada estas breves diretrizes, valemos passar do uso indeterminado do termo discurso à importância de seu valor conceitual dentro de sua fórmula na psicanálise.
No Seminário 17 são formulados a escritura do discurso da psicanálise e os quatro discursos. Já no Seminário 16, aborda o “retorno a Freud” e o acontecimento Freud como acontecimento de discurso.
Nome de autor, acontecimento de discurso: de um retorno que não é regresso
Lacan tem uma pira após assistir uma conferência de Michel Foucalt, pelo que tudo indica, essa pira está em estabelecer o método com o qual lê e localizar Sigmund Freud no campo da psicanálise.
Aqui se faz necessário uma breve síntese da conferência Qué es un autor? de Foucalt.
Em voga os debates da época, a figura do autor foi desconstruída e analisada com muitas críticas no campo da linguística e da literatura. A inovação foi de o termo autor deixar de representar a um indivíduo criador e possuidor de uma obra. Para Roland Barthes autor é um efeito de escritura que acontece na linguagem, para Foucalt pertence ao paradigma do discurso.
Na discussão que nos interessa, dois nomes em particular no contexto da modernidade põem em jogo novos discursos: Marx e Freud.
O alcance que adquire pode ser interpretado pelo lugar que ocupa - em nosso caso - o nome Freud na proposta de Foucalt. Freud é um nome de autor que, ao operar com função, funda discurso. Assim sendo, impede de pensar na sua ação como o estabelecimento de um conjunto de elaborações conceituais ligadas à sua pessoa, a função nome de autor institui uma criação que excede o limite dos textos atribuídos à sua produção, trata-se de uma função instauradora de discursividade.
Por esta visão pode-se inferir que a função nome do autor como instauradora de um novo discurso é também atribuída à Lacan, quando refere-se ao “retorno a Freud”.
Quanto à originalidade de Freud e ao valor que lhe é atribuído, Lacan denomina de o acontecimento Freud, como sendo o nascimento da psicanálise ligado à figura de Freud.
Com seu diagnóstico sobre os psicanalistas e a pobre leitura da obra freudiana, Lacan evidencia a valorização da relação entre o acontecimento Freud, o discurso como conceito e a temporalidade própria do discurso.
O ponto relevante para entender a diferença está na temporalidade que não corresponde à ideia de um tempo cronológico, pois o desenvolvimento é em ler o acontecimento como primeiro e um segundo momento onde se produz o discurso, passando a adquirir a condição de relato histórico.
Essa noção temporal ainda dá margem para criar uma falsa divisão do texto escrito - o conjunto da escritura freudiana - uma ação acabada que fica no passado e do discurso cuja única missão é relatar o acontecido, admitindo versões tão numerosas quanto a quantidade de leitores que possa existir. Posto isso, se o acontecimento é de discurso, não é de algo enquanto relato de algo que tenha substância em si mesmo nem de acontecimento como uma ação anterior e alheia ao discurso.
O projeto freudiano pelo avesso e a oposição: aparelho psíquico/discurso
Posto a lógica temporal do discurso com o reconhecimento da retroação, o "futuro anterior" defendido por Lacan, retomamos o projeto freudiano pelo avesso.
O avesso da psicanálise é título do seminário 17 de Lacan onde ele nos apresenta os quatro discursos: do mestre, da histérica, do universitário e do analista.
No quadrante da disposição dos discursos em Mestre Universitário Histérica Analista, dois quartos de giro à partir do Mestre traça-se uma diagonal entre o discurso do Mestre e o da Psicanálise numa relação de contraponto, ou seja, funcionando "ao avesso".
A proposta aqui é contrapor a noção de aparelho psíquico freudiano (discurso do Mestre) ao discurso formalizado em Lacan (discurso do Analista).
Um grande destaque está na concepção de sujeito, onde na visão freudiana coincide com o indivíduo moderno, nascido como categoria que define a unidade da espécie humana com suas questões problemáticas e complexas. Posto de forma extremamente sucinta esta visão de sujeito, Freud entende que a problemática e complexidade se internaliza no próprio indivíduo. Para fundamentar a condição específica da espécie humana, propõe a existência de um aparelho psíquico funcionando no interior de cada indivíduo.
Diversas foram as elaborações apresentadas sobre o funcionamento do psiquismo no percurso de Freud com a psicanálise, onde em "O Eu e o Isso" ele tenta dar conta de cada uma das instâncias e suas funções que compõe o aparelho psíquico, tendo seu motor de índole energética.
Pode ser que um dos trabalhos de Freud onde mais se destaca o lugar da linguagem, seja "O chiste e sua relação com o inconsciente" junto com a referência à Interpretação dos sonhos, mas novamente trazendo uma teoria econômica de motor energético do funcionamento psíquico.
Outro ponto de interesse é referente à "segunda tópica": Eu - Supereu - Isso. Instâncias nomeadas com termos que remetem a pronomes pessoais. O eu como lugar de enunciação (primeira pessoa). O supereu configurado na segunda pessoa gramatical - tu. Mas, ao invés de ser a quem se dirige o eu, esse tu conjuga no imperativo o dever ser que impacta ao eu. Quanto ao Isso, equivalente à terceira pessoa e impessoal, remetendo ao que é impronunciável.
Em suma, este esquema está posto como base para o desdobramento de uma realidade prévia que propõe a existência de algo extralinguístico, promovendo dificuldades no foco da primazia com a linguagem.
Ao Isso freudiano reduzido aqui à terceira pessoa gramatical, opomos o Isso fala lacaniano, que remete à máquina da linguagem, ao movimento, à articulação significante pronunciada a partir de um discurso.
Texto-Clínico: analisador metodológico
Texto-clínico é um termo técnico criado por Haydée Montesano (autora deste artigo) que pode ser entendido como um analisador metodológico, uma chave que tem por objetivo estabelecer diferenças entre os dois paradigmas e delimitar um espaço na apreciação das operações que foram apresentadas. Texto-clínico possibilita sustentar a noção de texto, sendo uma operação de leitura que se especifica a partir de elementos estruturais baseados na obra de Lacan, bem como função para escrita de casos dentro da álgebra, termos matemáticos e topológicos propostos pelo autor.
Os elementos que dão sustentação e funcionamento à este conceito são: o plano narrativo, ligado ao que pareceria coincidir com o dito no espaço clínico, mas que sofre interferência na lógica significante. É à partir dessa lógica que se introduz a diferença com a palavra, pois o inconsciente é que está em jogo, afastando a correspondência entre enunciado e enunciação.
Se o dito não é propriedade de indivíduo algum, a ideia de referência e referente é desconstruída. Se a referência é aquilo de que se fala, consideramos que o referente é: "Isso fala", ou seja, a emergência do inconsciente na fala.
Posto isso, o plano narrativo dá a possibilidade de localizar as posições enunciativas e construir a historização efeito da retroação, assim se faz possível ler o sujeito, entendendo que não é o indivíduo que se repetem mas que o insistente é uma lógica significante que pode ser reconhecida.
Isso possibilita estabelecer diferenças na construção do caso clínico a partir de Lacan e o que se pode entender como fundamentos freudianos.
À partir de um plano narrativo no dispositivo clínico para estabelecer categorias de análise da construção de um caso à partir da teoria freudiana, temos como apoio a teoria narratológica de Paul Ricouer conveniente para ordenar a narração textual dos históricos. Para simplificar, sua proposta tem como objetivo pensar a narrativa como um modo de acessar "o ser do eu" com sua interpretação baseada no tempo e mimesis. Tempo no registro do passado-presente-futuro correlacionados segundo proposto por Santo Agostinho.
É a posteriori que a narração nesse tempo opera a possibilidade de construir nessa ação pré-narrativa, o ser do eu.
Embora Freud tenha analisado o caso do presidente Schreber por seus escritos autobiográficos à partir de sua segunda tópica como base (Isso, Eu, Supereu), há alguma aproximação do que tentamos expor neste trabalho por uma análise à partir do texto-clínico, porém enfatizando suas diferenças por uma leitura com pressupostos lacanianos.
Lacan - A revolução negada
Resumo - Representação x Significante
Pedro Paschuetto
Intimamente ligado com o tópico anterior (ICS Freudiano x ICS Lacaniano), este que se apresenta pode seguir como um desdobramento do entendimento do sujeito freudiano e do sujeito lacaniano.
O conceito de representação de Freud traz à reboque necessariamente o conceito de sujeito, ser, self e indivíduo
substancializado pela filosofia junto com o da psicologia e psiquiatria do século XIX.
O conceito acerca da construção deste sujeito em Freud se dá pela relação dos sentidos do corpo com as impressões do mundo externo. Estes sentidos do corpo criariam o aparelho psíquico, lugar onde essas impressões receberiam sensações diversas. Este processo, por sua vez, chamado de “desenvolvimento psicossexual” daria a luz a um inconsciente cheio de conteúdos que o sujeito buscaria representar os afetos recalcados da infância durante sua vida. Todo o conteúdo que foi introjetado na fase do desenvolvimento psicossexual seria projetado de forma inconsciente no mundo exterior (objetal), buscando a realização das pulsões originárias da fisiologia do corpo orgânico.
Para Lacan o inconsciente é uma abstração bastando apenas as palavras como significantes para ser constituído, tampouco sendo representado por uma tendência interior ou orgânica do corpo da pessoa. Se por um lado temos para Freud a representação como algo insconsciente carregado de conteúdo real, para Lacan o significante é em si algo vazio e abstrato, precisando de um outro significante para dar algum sentido ao enunciado, onde, nesta tentativa de dar sentido ao enunciado, surgiria a noção de “eu”, de sujeito, descarregado de qualquer conteúdo individual e particular. O conceito de representação parte da premissa de estar circunscrito pelo aparelho psíquico individual e particular, por sua vez o significante acaba por ser localizado no discurso do Outro e os pensamentos sem um caráter individual.
Depreende-se então a partir deste postulado de que o conceito de significante não poderia representar nenhum objeto externo nem nenhuma tendência interna da pessoa.
Essa descentralização do sujeito pode ser entendida como uma dissolução do sujeito freudiano, posto que há uma construção, um desenvolvimento de um aparelho psíquico individual, que para a teoria de Lacan há outro viés: basta entrar na linguagem, captar a falta no discurso do Outro, entrar no processo de simbolização através da atuação da metáfora paterna e a tentativa de inscrição de um "eu" se dá por si só na fala, na cadeia de significantes, no esforço de dar sentido à uma abstração que tem características da individualidade.
Na teoria freudiana: o inconsciente é um arcabouço preenchido com afetos (prazer e desprazer) que busca através da representação entre coisa e palavra, ter uma carga libidinal descarregada no mundo objetal, movida pelas pulsões orgânicas originárias no corpo.
Na teoria lacaniana: o inconsciente é uma estrutura pré-estabelecida, ou seja, existente antes do nascimento da pessoa, pelo qual ela tentará dar sentido à um eu pela falta percebida do discurso do Outro, não havendo tendências "interiores e orgânicas".
Há inúmeras sentenças e fórmulas que evidenciam a desconexão do significante com o mundo exterior e interior, uma delas emprestada de Hegel: “a palavra mata a coisa”, ou seja, onde há palavra (significante), não há a coisa, mas sim uma tentativa no afã de representá-la através do relato. Posto isso, podemos entender que o relato é um esforço de representação daquilo que foge, escapa e evade. Aí que Lacan tece o conceito de significante.
Por volta do século IV foi escrito um livro chamado Tao Te Ching, que significa algo como "O livro do caminho e da virtude" atribuído à Lao Tsé. Em seu primeiro poema ele versa sobre a incapacidade da mente humana de criar qualquer conceito acerca do criador. Aqui podemos ligar este princípio com que Hegel enuncia: "a palavra mata a coisa".
Tao Te Ching - Poema 1
A imagem que você possa conceber do Criador
não é a sua verdadeira realidade;
qualquer nome ou forma que você lhe atribuir
certamente não indicará seu verdadeiro
nome ou forma.
No imanifesto e no inonimável está a origem do
Céu e da Terra.
Todas as coisas a que podemos dar nomes
tem sua origem no imanifesto.
Somente através de nossa existência
poderemos contemplar o imanifesto.
Só compreenderemos a essência do Criador
quando nos tornarmos um com ele.
Esse, sem dúvida, é o grande mistério:
Conhecê-lo realmente é o cerne
da sabedoria suprema.
Um ponto a se notar é que a teoria de Lacan tenta revelar movimentos, articulações entre conceitos e formulações num
entrelaçamento que se faz necessário muito estudo da teoria, onde para entender um conceito há outro ligado a ele e assim por diante. É necessário um esforço por parte do suposto analista, pois uma das características da mente é colocar ponto final, dar fim e borda a entendimentos conceituais. A fala "Eu entendi" à partir deste ponto de vista pode soar um pouco presunçosa, daí um possível entendimento da angústia gerada pela teoria de Lacan de sustentar esse "limbo de compreensão". Aqui, se falo "eu entendi" estou formalizando o sujeito, definindo-o, já esse limbo dificulta a formalização de um "eu" que tenha entendido algo, isso vai na contramão do ego pensado à no mínimo dois mil anos.
Onde há o rótulo empregado pela linguagem, aquilo deixa de ser o que é. Onde há o intelecto, a realidade deixa de ser. Onde há convicção na explicação dos fenômenos que atravessam o ser humano, há uma perda significativa da experimentação da vida. Por isso uma pessoa dominada pela razão de seu intelecto, em outras palavras, pelo assujeitamento da linguagem do Outro, seus conceitos e suas convicções, ela se torna apática para a vida: tudo sabe, tudo quer explicar, tudo quer rotular, não há mais novidade ou surpresa: há um embotamento, uma diminuição da riqueza das experiências e o surgimento de sintomas e maus-estares.
A frase “o significante faz buraco” exprime bem a ideia de que não há representação de algo concreto da realidade, e, portanto, que o conceito de significante se afasta do entendimento da ordem simbólica como representação, “Não há nenhuma realidade pré-discursiva” denota a ideia de que não existe uma metalinguagem. Por isso a importância de manter “a necessidade de falar sobre a realidade última, como se estivesse em algum lugar diferente que no próprio exercício de falar dela, é desconhecer a realidade onde nos movemos.”
